segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A ética da política

A crise política sem fim e sem precedentes sugere algumas reflexões sobre o problema da ética na política. Nenhuma profissão é mais nobre do que a política porque quem a exerce assume responsabilidades só compatíveis com grandes qualidades morais e de competência. A atividade política só se justifica se o político tiver espírito republicano, ou seja, se suas ações, além de buscarem a conquista do poder, forem dirigidas para o bem público, que não é fácil definir, mas que é preciso sempre buscar. Um bem público que variará de acordo com a ideologia ou os valores de cada político, mas o qual se espera que ele busque com prudência e coragem. E nenhuma profissão é mais importante, porque o político, na sua capacidade de definir instituições e tomar decisões estratégicas na vida das nações, tem uma influência sobre a vida das pessoas maior do que a de qualquer outra profissão.

A ética da política, porém, não é a mesma ética da vida pessoal. É claro que existem princípios gerais, como não matar ou não roubar, mas entre a ética pessoal e a ética política há uma diferença básica: na vida pessoal deve-se esperar que cada indivíduo aja de acordo com o que Max Weber chamou a ética da convicção, ou seja, a ética dos princípios morais aceitos em cada sociedade já na política prevalece a ética da responsabilidade.

A ética da responsabilidade leva em consideração as consequumlências das decisões que o político adota. Em muitas ocasiões, o político é obrigado a tomar decisões que envolvem meios não muito nobres para alcançar os objetivos públicos. O político, por exemplo, não tem alternativa senão fazer compromissos para alcançar maiorias.

A expressão ldquoética da responsabilidaderdquo é uma forma mitigada do clássico princípio republicano de Maquiavel de que os fins justificam os meios. Para o grande pensador florentino, fundador do republicanismo moderno, o interesse público era o critério essencial, mas diferentemente do conceito de ética da responsabilidade, ele justificava praticamente qualquer meio desde que visasse o interesse público.

Nessa contradição entre os fins públicos e os meios existe um problema de grau. É claro que o político deve ser fiel à sua visão do bem público, mas não pode ser radical tanto em relação aos fins nem aos meios. Não pode acreditar que detém o monopólio da definição desse bem: o político democrático e republicano tem a sua visão do interesse comum, mas respeita a dos outros. Por outro lado, ainda que o uso de meios discutíveis possa ser justificado em certas circunstâncias, é evidente que não podem ser quaisquer os meios utilizados. É preciso aqui também ser razoável: alguns meios são absolutamente condenáveis e portanto injustificáveis. Foi por isso que Weber, ao invés de ficar com a ética de Maquiavel, preferiu falar em ética da responsabilidade, para poder enfatizar o fator grau na escolha tanto dos fins quanto dos meios.

O político deve agir de acordo com a ética da responsabilidade, porque essa é a única ética compatível com o espírito republicano. Um grande número de políticos, porém, não age de acordo com ela. Muitos agem imoralmente como temos visto nesta crise. Sugiro que, adotando os critérios anteriores, há três tipos de imoralidade na política: imoralidade quanto aos meios, quanto aos fins, e quanto aos meios e aos fins.

A imoralidade quanto aos meios é aquela que resulta de os meios utilizados serem definitivamente condenáveis. A imoralidade quanto aos fins é aquela que se materializa quando falta ao político a noção de bem público: ainda que seu discurso possa afirmar valores, ele realmente busca apenas seu poder ou seu enriquecimento, ou ambos. Neste caso configura-se o político oportunista, que não tem outro critério senão seu próprio interesse. Há certos casos, em que a imoralidade é apenas em relação aos meios, outros, apenas quanto aos fins, mas geralmente é uma imoralidade tanto os meios quanto os fins: o político usa de quaisquer meios para atingir seus fins pessoais. Neste caso temos a imoralidade absoluta, o oportunismo, radical.

Quando pensamos nos principais responsáveis pela atual crise moral, o que vemos é que poucos foram imorais apenas em relação aos meios, utilizando meios condenáveis como a corrupção e o suborno, mas se mantendo fiéis a seus valores. A maioria é constituída de políticos que traíram todos os seus compromissos e passaram a adotar políticas econômicas que até o dia anterior criticavam acerbamente. Não agiram de acordo com a ética da responsabilidade ou mesmo com a ética de Maquiavel, mas de acordo apenas com seu interesse em se compor com os poderosos ou com os que pensam serem os poderosos aqui e no exterior. Seu único objetivo era e continua a ser sua permanência no poder. Um desses políticos acabou de perder o poder em um dos episódios mais lamentáveis de nossa história o outro continua a fazer campanha como se não fosse responsável por nada. Esse tipo de política, porém, tem vida curta nas democracias.

Luiz Carlos Bresser-Pereira
FolhaSP

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Os perigos do triunfalismo

Embalado por uma sequência de notícias positivas, o Brasil respira um clima de otimismo. A retórica do presidente e a propaganda do governo tratam de lhes dar a mais ampla repercussão e extrair-lhes o máximo simbolismo possível. A mensagem subliminar ecoa o velho "ninguém segura este país", bordão repetido ad nauseam nos tempos do "milagre brasileiro" e da ditadura militar. Há boas e sólidas razões para ser otimista no Brasil de hoje. Não menos sólidas, porém, são as razões para evitar o triunfalismo, tanto mais quando surge acompanhado da revalorização anacrônica do Estado empreendedor.

Copa do Mundo em 2014 e Olimpíada em 2016, quem pode torcer o nariz? Daí a dizer, como disse o presidente, que não há que se preocupar com os gastos, pois todo o centavo utilizado será investimento, vai uma enorme distância. A fala presidencial mostra o primeiro perigo do triunfalismo: o de gastar além da conta e, pior, gastar mal.

O horizonte de médio prazo para as contas públicas tem nuvens, formadas por um acúmulo de decisões recentes do governo federal que implicam aumento permanente nos gastos correntes, em especial com pessoal. A redução da meta de superávit primário neste ano até se justifica, mas acomoda uma tendência à expansão dos gastos que dificilmente será revertida em 2010, deixando todo o eventual esforço fiscal adicional, em ano eleitoral, do lado da receita, que vem demorando a reagir à melhora da economia. Ao que tudo indica, do Congresso, com o beneplácito do Executivo, virão em breve novas pressões estruturais sobre o gasto, especialmente na área da Previdência.

É à luz desse quadro, ao qual se somam vários investimentos e projetos de investimento que disputam espaços cada vez mais exíguos no orçamento público, que se devem analisar os desafios representados pela realização dos dois maiores eventos esportivos globais no intervalo de apenas dois anos. Alguém supõe que a iniciativa privada será capaz de realizar os investimentos necessários? Existe quem creia que não serão imensas as pressões para que o investimento público não apenas tome a dianteira, mas também cubra toda e qualquer lacuna deixada pelo investimento privado? Pode haver quem pense que devamos nos despreocupar com o risco de que os cofres públicos tenham de derramar montante muito maior do que o inicialmente estimado, por força da urgência dos prazos, do "compromisso" com a imagem internacional do País e do jogo dos muitos e poderosos interesses mobilizados? Devemos acreditar piamente que, por exemplo, todos os investimentos para modernizar e, em alguns casos, ampliar os já superdimensionados estádios brasileiros respondam aos melhores interesses do País?

Outro perigo do triunfalismo é acreditar ser possível promover com igual empenho todos os projetos em tese "estratégicos" para o desenvolvimento: fabricaremos submarino a propulsão nuclear, enriqueceremos urânio para uso próprio e exportação, reequiparemos as Forças Armadas, reergueremos a indústria naval, iremos de São Paulo ao Rio num trem-bala, daremos saltos em vários campos da ciência e da tecnologia, construiremos 1 milhão de moradias, universalizaremos o acesso à banda larga, colocaremos todos os jovens no ensino médio, a cada cerimônia oficial se acrescenta mais um item à lista de objetivos governamentais. Grande parte deles tem mérito. Falta, porém, discussão mais profunda, com a sociedade e no Congresso, sobre as prioridades. Maior ainda é a falta de gestão para transformar objetivos em resultados, donde a distância colossal entre a retórica e os fatos. A esse respeito, nada mais exemplar que o episódio recente do Enem, em que o propósito de ampliar rapidamente seu alcance não encontrou correspondência em cuidados mínimos com a segurança na impressão e estocagem das provas, o que permitiu a uma dupla de mequetrefes roubá-las, escondendo-as debaixo das roupas (as de cima e as de baixo).

Dado que os recursos são finitos, por maiores que sejam as asas da nossa expectativa em relação às ainda longínquas receitas futuras do pré-sal, é preciso discutir a sério o que mais nos interessa (ter submarino a propulsão nuclear ou melhores professores, por exemplo?). Nem sempre as respostas são óbvias e fáceis, mas é preciso enfrentar as perguntas. O triunfalismo nos cega para a importância das próprias perguntas.

O terceiro perigo do triunfalismo é despertar reações negativas de quem tem razões, subjetivas que sejam, para temer o nosso "triunfo". Perde-se com isso capital de confiança e capacidade de influência, de um lado, sem o correspondente acréscimo de poder real, de outro. Isso porque o triunfalismo se caracteriza justamente por nos fazer parecer mais do que na verdade somos e podemos. É nas relações do Brasil com os nossos vizinhos que esse perigo aparece de forma mais clara. Não por acaso, veio de um ex-presidente do Uruguai, Julio María Sanguinetti, em artigo publicado no jornal argentino La Nación, em 2 de outubro, a primeira advertência explícita sobre os riscos do triunfalismo brasileiro. Não nos iludamos: por maior que se tenha tornado a assimetria econômica entre o Brasil e os demais países da América do Sul, as nossas possibilidades de projeção global dependem da nossa capacidade de exercer um papel de moderação política e promoção do desenvolvimento em nossa vizinhança.

Os perigos do triunfalismo não se limitam, porém, ao nosso entorno imediato. Eles podem contaminar tolamente as nossas relações com os países centrais, em especial os Estados Unidos, na sensível área da energia nuclear, na qual, de quando em vez, temos os nossos arroubos de arrependimento por havermos assinado (tardiamente) o Tratado de Não-Proliferação Nuclear.

É hora de pôr a bola no chão. Não para cair na retranca, mas para podermos jogar o nosso melhor jogo. E vencer os muitos desafios que temos pela frente.

18/10 Estadão - Sergio Fausto, coordenador de Estudos e Debates do iFHC, é membro do Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional (Gacint) da USPas

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Autoritarismo Eleitoral

Nos últimos anos vários governos latino-americanos eleitos democraticamente têm recorrido a fórmulas antidemocráticas com o objetivo de controlar a arena política e, assim, minimizar a concorrência eleitoral preexistente. Buscam livrar-se de um dos atributos da democracia eleitoral que lhes garantiram o acesso ao poder. É justamente esse impulso regressivo que chama a atenção como uma das características dos experimentos de "governo popular" em curso na Venezuela, na Bolívia, no Equador e na Nicarágua. Insisto: uma das marcas. Pois esse caráter regressivo se combina com o componente popular, inaugurando uma lógica e uma dinâmica política novas, das quais as noções de "populismo" ou "neopopulismo" não dão conta. Ao cientista social cumpre observar o fenômeno novo sem se esquivar da tarefa de nomeá-lo adequadamente, recorrendo a uma inovação conceitual, se necessário. Pode ser útil para refletir sobre as fórmulas de terapia preventiva mais adequadas.

Esses governos governam sob a égide de duas contradições que convém analisar melhor, pois delas derivam sua força e suas fraquezas. A primeira diz respeito à atitude para com a concorrência eleitoral: por um lado, são levados a jogar o jogo de eleições multipartidárias regulares, minimamente competitivas, para continuarem se legitimando - é que o otimismo democrático que varreu a América Latina desde 1980 e o resto do mundo a partir dos anos 90 fixou a preferência popular por eleições como o principal critério de legitimação para acesso ao Poder Executivo e ao Legislativo; por outro, onde há concorrência e, portanto, oportunidade de contestação, eleva-se o teor de incerteza quanto aos resultados das urnas. A contradição incômoda é resolvida pelo controle da arena eleitoral, que pode assumir várias formas: cerceamento dos direitos políticos e das liberdades civis, restrições aos meios de comunicação de massa e de financiamento quando em mãos oposicionistas, regras eleitorais discriminatórias.

Acabo de listar as características típicas de um novo animal: o autoritarismo eleitoral. É uma variedade de regimes cujo traço distintivo é uma profunda ambiguidade institucional. Têm eleições multipartidárias, socialmente inclusivas, porque baseadas no sufrágio universal, e são minimamente pluralistas, pois a oposição tem direito a concorrer e, embora nunca ganhe, obtém votos e cadeiras no Congresso. O autoritarismo eleitoral, em suma, caracteriza-se por fazer de eleições competitivas um instrumento de poder autoritário, não de democracia. A lista cobre países da antiga União Soviética, inclusive a Rússia; do Oriente Médio e do Norte da África, como Egito, Argélia e Tunísia; alguns do Leste e do Sul da Ásia, como Cingapura, Camboja e Malásia; além de vários da África subsaariana.

Os experimentos latino-americanos de autoritarismo eleitoral são uma espécie singular desse gênero porque resultam de uma dinâmica política regressiva - ao contrário dos demais, que em sua grande maioria nunca experimentaram instituições representativas e/ou sistemas de contrapesos entre Poderes. Estes têm matrizes autoritárias e são experimentos de liberalização política embrionários.

Uma segunda contradição, remete ao controle da arena política, graças à instrumentalização da participação popular. Por um lado, o recurso a eleições competitivas implica o reconhecimento institucional de um princípio de cepa liberal: a "vontade do povo soberano". Por outro, implica conceder ao eleitor e às oposições os recursos institucionais - e os valores - que os capacitam a contestar as eleições e o próprio regime. Com isso a coalizão dominante corre riscos de se deslegitimar, vendo-se obrigada a optar entre duas alternativas indigestas: arrochar o controle da arena política ou ceder mais espaço às oposições.

Essa caracterização vale para o gênero, mas a espécie dominante na nossa região se distingue pelo fato de que os governos relevantes têm (ou tiveram) raízes populares. É essa condição que lhes serve de incentivo para erigir a parcela majoritária do eleitorado em "vontade do povo soberano". Daí o impulso revisionista (das Constituições) e a vocação para legitimar-se por meio de plebiscitos. O problema é que, em condições mínimas de concorrência eleitoral e de liberdade de informação, periga que a "vontade do povo soberano" se revele volátil e, além disso, se apresente dividida. Por isso o controle da arena política passa necessariamente pelas restrições à liberdade de imprensa e pela tendência ao monopólio da informação. Deve-se isso a dois conjuntos de problemas, inerentes à democracia de massa e que a liberdade de imprensa contribui para atenuar - a par de instituições que obrigam os governantes a prestar contas. O primeiro é que a operação ideológica pela qual a vontade do eleitorado é convertida em "vontade do povo soberano" passa ao largo do xis da questão: quanto o eleitorado e a opinião pública sabem ou podem saber dos assuntos de interesse público? Mas há um segundo problema que se torna agudo nos países periféricos. Nas democracias de massa há uma enorme defasagem entre a democratização das informações, às quais a população tem acesso via rádio, TV, jornais, internet, e a capacidade que a população tem de elaborar as informações. No curto prazo, é à imprensa que cabe reduzir o espaço dessa defasagem, sempre e quando apresenta e divulga as formas possíveis e alternativas de elaboração da mesma informação por diferentes atores políticos. Nessas circunstâncias exerce um papel pedagógico.

A fórmula complementar para minimizar a defasagem, no longo prazo, é apostar na educação de qualidade.

Lourdes Sola, professora da USP, ex-presidente da Associação Internacional de Ciência Política, é diretora do Global Development Network, da International Institute for Democracy e do Conselho Internacional de Ciências Sociais.

O Estado de S. Paulo - 05/10/2009