domingo, 27 de setembro de 2009

Vergonha de ser brasileiro

O aspecto único do Holocausto, que o diferencia de horrores comparáveis como a escravidão, é que o extermínio do riquíssimo judaísmo europeu, berço de Einsteins, Kafkas e Freuds, foi executado pelo país mais culto da Europa pelo simples fato de os judeus serem judeus.
Eles não eram inimigos do Estado, não tinham exércitos, suas mortes não serviriam (prioritariamente) para o avanço econômico de seus perseguidores. Eram apenas de uma cultura/religião diferente e foram usados pela megalomania germano-hitlerista como a antítese do super-homem ariano, a ser eliminada do tecido alemão.
O sobrevivente do campo de extermínio de Auschwitz e prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel, ao voltar à sua aldeia natal na Romênia, disse que a vida por lá continuava exatamente igual desde que deixara o lugar com a família, 40 anos antes, rumo à morte. A única diferença é que não havia mais judeus.
Quase 9 milhões de judeus viviam nos países europeus direta ou indiretamente sob controle alemão. Os nazistas conseguiram matar cerca de 6 milhões. Se os judeus não lembrarem seu Holocausto, ele certamente será esquecido.
Por isso embrulha o estômago ver o presidente Lula abraçar o presidente Mahmoud Ahmadinejad em Nova York poucos dias depois de o iraniano declarar que "o Holocausto é uma mentira".
O insulto de Ahmadinejad foi ainda mais doloroso por ocorrer às vésperas do Rosh Ashaná, o Ano Novo judaico, período de reflexão. Os grandes países ocidentais o deploraram.
O Brasil se calou.
E logo depois ainda prestigiou o semi-pária num encontro de mais de uma hora na ONU, durante a Assembleia Geral da organização, para o mundo todo ver.
Lula e o Brasil estão no auge de sua projeção de poder. Estamos mudando de liga no jogo das nações. E nossa Chancelaria vende barato nosso cada vez mais importante apoio. O que o Irã dá em troca ao Brasil?
Antes de receber Ahmadinejad na cidade com a maior população judaica do mundo, Lula já havia sido o primeiro a apoiá-lo logo após a contestada eleição do iraniano. E ainda fez uma muito infeliz comparação dos conflitos entre oposicionistas e milícias armadas iranianas a uma rixa entre vascaínos e flamenguistas.
Tal rixa deixou dezenas de mortos e enfraqueceu um regime teocrático entre os mais repressores do mundo. Mas o Brasil de Lula foi o primeiro a estender sua mão para fortalecer o regime repressor de Teerã. E ainda receberá Ahmadinejad em visita em novembro.
O presidente brasileiro, genuinamente humanista, parece ter sido enrolado pelo anacrônico terceiro-mundismo que domina seus assessores e o Itamaraty. Ao ser questionado em Nova York sobre o negacionismo hediondo de Ahmadinejad em relação ao Holocausto, Lula respondeu:
"Isso não prejudica a relação do Estado brasileiro com o Irã porque isso não é um clube de amigos. Isso é uma relação do Estado brasileiro com o Estado iraniano."
A frase faria sentido se essa relação trouxesse benefícios ao Estado brasileiro proporcionais aos gestos de Lula. Mas ela só engrossa a lista de equívocos de sua diplomacia.
Já seria duro ver o Brasil tolerar a intolerância por recompensas mundanas. Tolerá-la por nada dá vergonha.

Sérgio Malbergier, é editor de Dinheiro da Folha. Foi editor de Mundo, correspondente em Londres e enviado especial a países como Iraque, Israel e Venezuela. Formado em cinema, pela ECA-USP, dirigiu dois curta-metragens: "A Árvore" e "Carô no Inferno

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Celebrando Bobbio no seu centenário

O próximo mês de outubro assinala o centenário de nascimento de Norberto Bobbio, o grande pensador italiano falecido em 2004, cuja obra há muito tempo vem sendo discutida e apreciada em seu país e em tantos quadrantes culturais do mundo. No Brasil, que visitou em 1983 e onde deu conferências e participou de debates na Universidade de Brasília e na Faculdade de Direito da USP, ele se tornou uma referência, não só para um diversificado espectro do campo político brasileiro que vai da esquerda ao centro liberal, como também para os estudiosos das áreas do conhecimento a que se dedicou ao longo de uma vida voltada para o ensino e a pesquisa.

O rigor e a profundidade dos conhecimentos, o espírito público, a inteireza do caráter, a altiva independência, o empenho no diálogo, o combate ao arbítrio e aos fanatismos, a dedicação à preservação da liberdade e a permanente preocupação com a igualdade são características do percurso de Norberto Bobbio e do seu “socialismo liberal”. Foram, no correr da sua vida, explicitadas e articuladas como professor e intelectual que militou no espaço público da palavra e da ação e são componentes substantivos do seu magistério.

O que singulariza o magistério de Bobbio é a clareza. San Tiago Dantas observou que “a tarefa da inteligência humana é tirar o valor das coisas da obscuridade para a luz”. A essa tarefa da inteligência humana Bobbio se dedicou com resultados exemplares. Por isso, foi considerado o grande clarificador dos problemas e desafios da teoria jurídica e da teoria política, da paz e da guerra, da tutela dos direitos humanos, da relação entre os intelectuais e o poder, das especificidades da cultura italiana e europeia e de seus autores clássicos, para mencionar grandes e significativos blocos da sua notável obra - da qual grande parte dos títulos mais conhecidos está disponível em edições brasileiras. Bobbio esclarece os seus leitores graças às virtudes do seu estilo de pensamento - e estilo, como a cor para o pintor, é uma qualidade da visão, como dizia Proust.

O estilo de Bobbio é de índole analítica. Analisar significa dividir, distinguir, decompor, que é o que ele faz no trato dos conceitos. Nas suas análises opera com uma multiplicidade de dicotomias voltadas para apontar diferenças e semelhanças e, dessa maneira, lidar com uma realidade complexa e desordenada. Levando em conta a “lição dos clássicos” e os seus temas recorrentes, reaglutina os conceitos, numa arte combinatória de grande originalidade, na qual a linguagem ilumina o entendimento dos contextos e das situações. É isso que faz dele um raro caso de pensador analítico com agudo senso da História. Daí a qualidade e pertinência dos seus juízos.

O ponto de partida de Bobbio, como diz em Política e Cultura, é o da “inquietação da pesquisa, o aguilhão da dúvida, a vontade do diálogo, o espírito crítico, a medida no julgar, o escrúpulo filológico, o senso de complexidade das coisas”. O pano de fundo da sua obra, como a de Isaiah Berlin, Raymond Aron, Hannah Arendt - o centenário destes também celebrei nesta página -, é uma resposta às rupturas e descontinuidades do século 20, cujas vicissitudes enfrentaram com a sensibilidade comum que, independentemente das posições, caracteriza uma geração, como salienta Ortega y Gasset.

Bobbio viveu os seus anos de formação no período fascista, regime político que é parte integrante da dinâmica da “era dos extremos”, que historicamente moldou o século 20. O fascismo, como ele observou, “trazia a violência no corpo. A violência era a sua ideologia”. Caracterizou-se pela exaltação da guerra e a estatolatria e o seu ímpeto motivador foi o combate à democracia.

A obra de Bobbio, em função da sua vivência e da sua oposição ao fascismo, a isso se contrapôs. Por isso, como observa Pier Paolo Portinaro, tem como um dos seus elementos constitutivos a contestação à fúria dos extremos, voltada para a destruição da razão, que caracterizou o contexto político italiano e europeu, com irradiação mundial antes, mas também depois da 2ª Guerra Mundial. É, assim, um percurso intelectual muito voltado para a pesquisa e a análise de alternativas medularmente distintas daquelas que o fascismo, como regime de vocação totalitária, emblematizou, em especial a destruição da democracia e a glorificação do belicismo e do papel salvador do “Duce”.

É nessa moldura que se configuraram temas recorrentes e interligados da reflexão de Bobbio. Entre eles, o da domesticação do poder pelo Estado de Direito, a defesa da perspectiva dos governados pela abrangente tutela das várias gerações de direitos humanos, a razão de ser da democracia e das suas regras, que “conta cabeças e não corta cabeças”. É nesse contexto, voltado para eliminar ou limitar, da melhor maneira possível, a violência como meio para resolver conflitos, que se insere a sua análise das relações internacionais e o seu empenho em prol da paz, direcionado para conter o caso mais clamoroso da violência coletiva, que é a guerra entre os Estados que, na era nuclear, tem o potencial de destruição da própria humanidade.

A violência, que se caracteriza pela desproporção entre meios e objetivos e pela falta de medida, destrói, exaure e não cria. Permeia este século 21, que continua carregando no seu bojo a herança da “era dos extremos” que moldou o século passado. A atualidade e a autoridade do legado de Bobbio residem na lúcida busca que, com o realismo de um olhar hobbesiano e a dimensão ética de um coração kantiano, empreende de caminhos jurídicos e políticos alternativos à violência no labirinto da convivência coletiva. Tem como lastro a conjetura de que o único possível e plausível salto qualitativo na História é o da passagem do reino da violência para o da não-violência.

Celso Lafer, O Estado de S. Paulo, 20/09/09


Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC

domingo, 20 de setembro de 2009

Coisas vistas, solas gastas

Há na vida dos mandatários de índole populista um momento em que a autoelevação, o sentimento de onipotência, os deixa muito próximos da Providência Divina. Imbuem-se da missão determinada pelo Senhor para conduzir o povo à terra prometida. Apreciados e bem avaliados pelas comunidades, com prestígio maior que antecessores, consideram-se imbatíveis, incomparáveis e infalíveis. Sua expressão é a extensão da verdade, sua crença remove qualquer montanha de dúvidas que, por acaso, se contraponha ao voluntarismo que os impregna. Governam plasmando a realidade com metáforas e lapidando a mitomania com a pintura de palanque. Igualam-se às divindades, atribuem-se poderes extraordinários e, como Prometeu, tentam passar a impressão de que só eles são capazes de conhecer os segredos do Olimpo. Se a descrição parece exagerada, até porque não se vive mais (ou ainda se vive?) o ciclo dos Estados absolutistas, não se pode descartar por completo a hipótese. É evidente que governantes modernos procuram se amparar numa base mínima de racionalidade, mas, em certos territórios, a barbárie ainda deixa laivos de rusticidade. Ritos ditatoriais ou de talhe fundamentalista marcam presença. No Oriente Médio a estampa é conhecida. Mesmo em governos que se proclamam democráticos a deificação de perfis tem sido prática recorrente. O "timoneiro" e vizinho Hugo Chávez corre mundo como a reencarnação de Simón Bolívar.

Se o leitor imaginava que o "nariz de cera" acima foi feito para adornar a fisionomia do nosso presidente, acertou em cheio. Não se trata de dizer que Lula usa por inteiro o manto sagrado. Só uma parte. Aquela que lhe convém. O ex-metalúrgico é um exemplo acabado da dinâmica social brasileira. Saiu da base profunda para o vértice da pirâmide. Entre as primeiras falas, quando cometia um "menas" verdade, e esta dourada fase em que se dá ao luxo de corrigir a expressão de ministros - acaba de corrigir o "interviu" do ministro Tarso Genro por "interveio" - deu um salto extraordinário. O refinamento do modo Lula de ser deu-lhe o direito de se sentar ao lado de Zeus, senhor do Olimpo, onde impera sob a graça da onipotência. Suas perorações são cada vez mais alinhavadas de lições virtuosas que só um espírito deificado é capaz de fazer. Querem um exemplo? O motivo que ele apresenta para adquirir dos franceses 36 caças Rafale, 5 submarinos e 50 helicópteros: defender as riquezas do pré-sal. Piratas da Somália, que raptam navios cargueiros nas costas da África, constituem séria ameaça às nossas reservas? Ou haverá ameaças mais iminentes? Há. O presidente assim enxerga: "Os homens já estão aí com a 4ª Frota quase em cima do pré-sal." Sob essa visão apocalíptica, justifica-se a compra dos aviões franceses e, se alguém questiona o preço mais alto dos caças em comparação com os americanos, retruca: "Daqui a pouco eu vou receber de graça." Ou seja, não é o Brasil que vai receber, mas é ele, o Rei-Sol, o nosso Luiz XIV, o destinatário das aeronaves. "L"État c"est moi."

Apontar a 4ª Frota como ameaça parece piada. Mas saindo da boca de Luiz Inácio a expressão ganha foro de verdade. Afinal, quem é dono da flauta dá o tom. Lembrando: essa frota foi desativada há 50 anos, tendo sido restabelecida em junho último com o propósito de combater o comércio de drogas, apoiar navios em situações de desastre e ajudar em missões de paz na América Latina e no Caribe. Mas os governantes da região a distinguem como ameaça à soberania de seus países. Imaginar que os Estados Unidos, que ainda portam o título de nação mais desenvolvida do mundo, possam vir a sequestrar petróleo de amigos é querer fazer pânico em festa noturna de sexta-feira 13. Pode ser que Lula, com a lupa de futurólogo, veja o cenário entre 1920 e 1925 e se depare com a 4ª Guerra Mundial, com os americanos liderando um bloco de países vorazes e dispostos a sequestrar o óleo de fontes produtoras. Mas o que dizer quando a previsão é de que o ouro negro do pré-sal só vai aparecer daqui a 10 ou 15 anos? E se nessa época o preço do petróleo, diante do boom do etanol, não compensar a manutenção de altos investimentos?

Por essa e por outras, Luiz Inácio começa a sentir os primeiros balanços da torre que o sustenta. Assumiu a defesa de José Sarney com um discurso anacrônico; aflige-se com as obras empacadas do PAC; de braços cruzados, contempla a expansão da insegurança e a deterioração do sistema de saúde. Esse rescaldo da fogueira explica a queda de 4,7 pontos na avaliação presidencial, segundo a última pesquisa Sensus. Para resgatar os altos índices de aprovação Sua Excelência tentará transformar o pré-sal no hino de elevação da autoestima a ser cantado no altar de um nacionalismo revigorado. A intenção? Atrair o rebanho que lhe é fiel para o curral de sua pré-candidata, a ministra Dilma Rousseff, cuja pontuação entrou em queda. O ciclo de vida do sermão de Cristo na montanha dura até hoje. Até quando o sermão de Lula no palanque atrairá as massas? Como Lula se acha parente do Mestre Divino, deve acreditar que seu verbo brilhará nos horizontes dos tempos.

Para tanto fez a escolha: a ética de resultados, em vez da ética de princípios. Por essa via caminhará com disposição e verve - e haja verve - para imprimir na consciência social o traço narcisista que recorta a face da administração: Lula aqui, ali e acolá, ele e sua sombra, ele e o espelho. Campanhas publicitárias, blog, discursos repetitivos, eventos em série, lobo e cordeiro andando juntos (ele é o cordeiro), tudo regrado pelo jogo dialético: "Este país pisava na miséria, hoje navega no progresso." Querem saber o que pode tirar Lula do Olimpo? O narcisismo. A parafernália comunicacional, regada de tecnologia, planejada para animar e monitorar o consciente e o inconsciente da população, redundará no efeito "copo transbordante", aquela conhecida sensação de coisa já vista e revista, ante a qual as pessoas tendem a reagir negativamente. Zaratustra, o profeta, diria: "Cansei-me das velhas línguas. Não quer mais o meu espírito caminhar com solas gastas."

Gaudêncio Torquato
O Estado de S. Paulo - 13/09/2009

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Por que a impunidade é tão frequente no Brasil

É comum associar a corrupção na esfera pública e a impunidade a regimes autoritários, sem eleições. Mas e o Brasil?

É COMUM associar a corrupção na esfera pública e a impunidade a regimes autoritários, sem eleições ou com eleições fraudadas, sem Parlamento ou com Parlamentos fictícios, onde não exista liberdade de expressão, com imprensa censurada e o Judiciário submisso ao Executivo. E onde as leis só valham enquanto for do interesse dos poderosos.

A explicação para a coexistência de corrupção, impunidade e regimes autoritários é que não existem freios ou contrapesos para controlar os abusos dos governantes, que, assim, exercem um poder absoluto. Já se afirmou que o poder corrompe, mas o poder absoluto corrompe absolutamente.

O remédio utilizado para combater a corrupção foi a democracia e a liberdade. Em regimes democráticos, o poder político é controlado por leis e instituições e, mais importante, sujeito a cobranças populares. Com isso, o espaço para malversação do patrimônio público foi reduzido e culpados puderam ser punidos, Mas e o Brasil? A Constituição, em seu artigo 1º, dispõe que o Brasil é um Estado democrático de Direito e, a seguir, arrola os direitos e as garantias individuais, coletivas e sociais.

Ora, esses preceitos têm sido observados. Realizamos eleições livres e periódicas, existe independência do Poder Judiciário, liberdade de imprensa, de opinião e de organização política. Com as limitações impostas pelas mazelas da natureza humana, é certo que no Brasil existe liberdade e democracia.

No entanto, frustrando a esperança de tantos que lutamos pela redemocratização, a percepção de corrupção e a sensação de impunidade no setor público perduram, se é que não aumentaram. O que deu errado?

O parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal determina: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".

Formalmente, esse comando é observado. A população que elege seus representantes. Em relação ao Executivo, não apenas formalmente mas também efetivamente, a sensação popular é a de que é o povo que escolhe o presidente, governador ou prefeito. Assim como escolhe, o eleitor acompanha, cobra e pune ou recompensa por meio do voto.

Levando em conta as inevitáveis imperfeições de processos sociais de massa e o estágio de desenvolvimento do Brasil, acredito que, para o Poder Executivo, o referido parágrafo único de fato reflete nossa realidade. Esperamos que a continuidade da prática eleitoral aperfeiçoe o processo de escolha dos governantes.

Entretanto, no caso do Legislativo a realidade é bem diferente. Via de regra não existe, para a maioria da população, a sensação de que o Parlamentar federal, estadual ou mesmo o municipal seja seu representante político, ou seja, aquele que exerce o poder em seu nome e deveria ter sua atividade acompanhada e ser cobrado, punido ou recompensado pelo voto.

A maioria dos eleitores nem se lembra em quem votou. A relação de representação política é quase inexistente. O que vigora é uma relação clientelista entre o eleitor e o candidato. O parlamentar é visto como se fosse um despachante que resolve problemas e atende a reivindicações particulares, nem sempre legítimas.

É nessa perspectiva que devem ser entendidas manifestações de parlamentares que afirmaram não se importar com a opinião pública. Eles acreditam que não serão julgados por seus eleitores pelas atitudes éticas ou políticas, mas por sua capacidade de atender às demandas particulares ou locais, como vaga em creche, apoio ao clube de futebol, emprego público, estradas vicinais, postos de saúde etc.

Enquanto essa realidade perdurar, será muito difícil reduzir a impunidade que grassa no Brasil. Para mudar, são necessárias alterações no sistema de votação das eleições proporcionais que estimulem uma relação de representatividade política entre o eleitor e o eleito, como a adoção do voto distrital, pois esse mecanismo promove uma aproximação do candidato com a população.
Mas não devemos ficar parados esperando que os políticos resolvam o problema. Essas mudanças podem ser apressadas com a conscientização de cada cidadão de sua responsabilidade ética e política. A culpa não é só dos políticos. Rogério Ceni tem razão.

É tarefa de todos nós.

ANDRÉ FRANCO MONTORO FILHO - Folha de São Paulo


ANDRÉ FRANCO MONTORO FILHO , 65, doutor em economia pela Universidade Yale (EUA), é professor titular da FEA-USP e presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial-ETCO. Foi secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo (governo Mário Covas) e presidente do BNDES (1985 a 1988).

domingo, 13 de setembro de 2009

"ALGO HICIMOS MAL"

DEPOIMENTO DO PRESIDENTE DA COSTA RICA

Palavras do Presidente Oscar Arias da Costa Rica na Cúpula das Américas em Trinidad e Tobago, 18 de abril de 2009

"ALGO HICIMOS MAL"

"Tenho a impressão de que cada vez que os países caribenhos e latino-americanos se reúnem com o presidente dos Estados Unidos da América, é para pedir-lhe coisas ou para reclamar coisas. Quase sempre, é para culpar os Estados Unidos de nossos males passados, presentes e futuros. Não creio que isso seja de todo justo.
Não podemos esquecer que a América Latina teve universidades antes que os Estados Unidos criassem Harvard e William & Mary, que são as primeiras universidades desse país.
Não podemos esquecer que nesse continente, como no mundo inteiro, pelo menos até 1750todos os americanos eram mais ou menos iguais: todos eram pobres.
Ao aparecer a Revolução Industrial na Inglaterra, outros países sobem nesse vagão: Alemanha, França, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e aqui a Revolução Industrial passou pela América Latina como um cometa, e não nos demos conta.
Certamente perdemos a oportunidade.
Há também uma diferença muito grande. Lendo a história da América Latina, comparada com a história dos Estados Unidos, compreende-se que a América Latina não teve um John Winthrop espanhol, nem português, que viesse com a Bíblia em sua mão disposto a construir uma Cidade sobre uma Colina, uma cidade que brilhasse, como foi a pretensão dos peregrinos que chegaram aos Estados Unidos.
Faz 50 anos, o México era mais rico que Portugal. Em 1950, um país como o Brasil tinha uma renda per capita mais elevada que o da Coréia do Sul. Faz 60 anos, Honduras tinha mais riqueza per capita que Cingapura, e hoje Cingapura em questão de 35 a 40 anos é um país com $40.000 de renda anual por habitante. Bem, algo nós fizemos mal, os latino-americanos.
Que fizemos errado? Nem posso enumerar todas as coisas que fizemos mal. Para começar, temos uma escolaridade de 7 anos.
Essa é a escolaridade média da América Latina e não é o caso da maioria dos países asiáticos. Certamente não é o caso de países como Estados Unidos e Canadá, com a melhor educação do mundo, similar a dos europeus. De cada 10 estudantes que ingressam no nível secundário na América Latina, em alguns países, só um termina esse nível secundário.
Há países que têm uma mortalidade infantil de 50 crianças por cada mil, quando a média nos países asiáticos mais avançados é de 8, 9 ou 10.
Nós temos países onde a carga tributária é de 12% do produto interno bruto e não é responsabilidade de ninguém, exceto nossa, que não cobremos dinheiro das pessoas mais ricas dos nossos países. Ninguém tem a culpa disso, a não ser nós mesmos.
Em 1950, cada cidadão norte-americano era quatro vezes mais rico que um cidadão latino-americano. Hoje em dia, um cidadão norte-americano é 10, 15 ou 20 vezes mais rico que um latino-americano. Isso não é culpa dos Estados Unidos, é culpa nossa.
No meu pronunciamento me referi a um fato que para mim é grotesco e que somente demonstra que o sistema de valores do século XX, que parece ser o que estamos pondo em prática também no século XXI, é um sistema de valores equivocado.
Porque não pode ser que o mundo rico dedique 100.000 milhões de dólares para aliviar a pobreza dos 80% da população do mundo "num planeta que tem 2.500 milhões de seres humanos com uma renda de $2 por dia" e que gaste 13 vezes mais ($1.300.000.000.000) em armas e soldados.
Como disse esta manhã, não pode ser que a América Latina gaste $50.000* milhões em armas e soldados.
Eu me pergunto: quem é o nosso inimigo?
Nosso inimigo, presidente Correa, desta desigualdade que o Sr. aponta com muita razão, é a falta de educação; é o analfabetismo;
é que não gastamos na saúde de nosso povo; que não criamos a infra-estruturar necessária, as estradas, os portos, os aeroportos; que não estamos dedicando os recursos necessários para deter a degradação do meio ambiente; é a desigualdade que temos que nos envergonhar realmente; é produto, entre muitas outras coisas, de que não estamos educando nossos filhos e nossas filhas.
Vá alguém a uma universidade latino-americana e parece no entanto que estamos nos sessenta, setenta ou oitenta.
Parece que nos esquecemos de que em 9 de novembro de 1989 aconteceu algo de muito importante, ao cair o Muro de Berlim, e que o mundo mudou. Temos que aceitar que este é um mundo diferente, e nisso francamente penso que os acadêmicos, que toda gente pensante, que todos os economistas, que todos os historiadores, quase concordam que o século XXI é um século dos asiáticos não dos latino-americanos.
E eu, lamentavelmente, concordo com eles. Porque enquanto nós continuamos discutindo sobre ideologias, continuamos discutindo sobre todos os "ismos" (qual é o melhor? capitalismo, socialismo, comunismo, liberalismo, neoliberalismo, socialcristianismo...) os asiáticos encontraram um "ismo" muito realista para o século XXI e o final do século XX, que é o pragmatismo.
Para só citar um exemplo, recordemos que quando Deng Xiaoping visitou Cingapura e a Coréia do Sul, depois de ter-se dado conta de que seus próprios vizinhos estavam enriquecendo de uma maneira muito acelerada, regressou a Pequim e disse aos velhos camaradas maoístas que o haviam acompanhado na Grande Marcha: "Bem, a verdade, queridos camaradas, é que a mim não importa se o gato é branco ou negro, só o que me interessa é que cace ratos".
E se Mao estivesse vivo, teria morrido de novo quando disse que "a verdade é que enriquecer é glorioso".
E enquanto os chineses fazem isso, e desde 1979 até hoje crescem a 11%, 12% ou 13%, e tiraram 300 milhões de habitantes da pobreza, nós continuamos discutindo sobre ideologias que devíamos ter enterrado há muito tempo atrás.
A boa notícia é que isto Deng Xiaoping o conseguiu quando tinha 74 anos.
Olhando em volta, queridos presidentes, não vejo ninguém que esteja perto dos 74 anos.
Por isso só lhes peço que não esperemos completá-los para fazer as mudanças que temos que fazer. Muchas gracias."

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Práxis de hoje e de antigamente

O homem na história sempre procurou compreender e interpretar sua própria narrativa, o conjunto das suas ações como ser social. Tal processo de compreensão, de conscientização da importância da interação humana, é entendido como práxis.

De acordo com Marx, práxis é o agir consciente, no qual o homem, diferente de qualquer outro animal, realiza suas ações traçando um objetivo e buscando um resultado para, desta forma, auxiliar no processo de construção da história coletiva.

Entretanto, enquanto o homem de antigamente lidava com necessidades básicas e sua relação social baseava-se mais na busca da liberdade e a liberdade de todos; a modernidade impôs um consumismo brutal e fez com que o homem passasse a pensar mais em si mesmo, suas necessidades crescentes, desconsiderando o bem comum.

Também na sociedade moderna, infelizmente, com o predomínio do poder em mãos das classes mais organizadas, as regras deixam de abranger o todo, o bem comum, e acabam sendo criadas para preservar grupos sociais, e o benefício de ações sociais continua restrito a poucos, num perverso círculo vicioso. Neste processo, parte da população já não consegue nem mesmo suprir suas necessidades mais essenciais.

No Brasil, ainda há fatores históricos mais complicadores. Além de causas universais, as políticas sociais e econômicas do país visavam, já no início de nossa colonização, à exploração de recursos para envio ao exterior e não se concentravam em melhorar as condições de vida do brasileiro. Como resultado, o Brasil, país de riquezas potenciais imensas, apresenta índices de desigualdade absolutamente assustadores.

É nesta encruzilhada que nos encontramos atualmente no nosso país. Podemos até mesmo ter melhorado nossos números econômicos, podemos ter alcançado o alardeado status de ‘emergente’ e, não me entendam mal, há grande mérito neste progresso. Entretanto, a realidade de nossas ruas, o abismo social e econômico flagrante de nossa população e a desigualdade de renda exigem que enfoquemos o problema da pobreza e da desigualdade de modo mais concreto. Devemos buscar eliminar as causas estruturais da pobreza, o que implica na tomada de ações políticas para eliminar os vícios de auto-preservação.

Portanto, devemos nos conscientizar do nosso dever em criar instrumentos democráticos, mas torná-los acessíveis à população como um todo, para que possamos, enfim, cuidar das necessidades do povo, para que possamos finalmente escrever um novo capítulo social no Brasil.