segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Visita indesejável

O mesmo país que tentou oferecer segurança e consolo a vítimas do Holocausto estende honras a quem banaliza o mal absoluto?

É DESCONFORTÁVEL recebermos no Brasil o chefe de um regime ditatorial e repressivo. Afinal, temos um passado recente de luta contra a ditadura e firmamos na Constituição de 1988 os ideais de democracia e direitos humanos. Uma coisa são relações diplomáticas com ditaduras, outra é hospedar em casa os seus chefes.

O presidente Ahmadinejad, do Irã, acaba de ser reconduzido ao poder por eleições notoriamente fraudulentas. A fraude foi tão ostensiva que dura até hoje no país a onda de revolta desencadeada. Passados vários meses, os participantes de protestos pacíficos são brutalizados por bandos fascistas que não hesitam em assassinar manifestantes indefesos, como a jovem estudante que se tornou símbolo mundial da resistência iraniana. Presos, torturados, sexualmente violentados nas prisões, os opositores são condenados, alguns à morte, em julgamentos monstros que lembram os processos estalinistas de Moscou.

Como reagiríamos se apenas um décimo disso estivesse ocorrendo no Paraguai ou, digamos, em Honduras, onde nos mostramos tão indignados ao condenar a destituição de um presidente? Enquanto em Tegucigalpa nos negamos a aceitar o mínimo contacto com o governo de fato, tem sentido receber de braços abertos o homem cujo ministro da Defesa é procurado pela Interpol devido ao atentado ao centro comunitário judaico em Buenos Aires, que causou em 1994 a morte de 85 pessoas?

A acusação nesse caso não provém dos americanos ou israelenses. Foi por iniciativa do governo argentino que o nome foi incluído na lista dos terroristas buscados pela Justiça. Se Brasília tem dúvidas, por que não pergunta à nossa amiga, a presidente Cristina Kirchner?

Democracia e direitos humanos são indivisíveis e devem ser defendidos em qualquer parte do mundo. É incoerente proceder como se esses valores perdessem importância na razão direta do afastamento geográfico. Tampouco é admissível honrar os que deram a vida para combater a ditadura no Brasil, na Argentina, no Chile e confratenizar-se com os que torturam e condenam à morte os opositores no Irã. Com que autoridade festejaremos em março de 2010 os 25 anos do fim da ditadura e do início da Nova República?

O extremismo e o gosto de provocação em Ahmadinejad o converteram no mais tristemente célebre negador do Holocausto, o diabólico extermínio de milhões de seres humanos, crianças, mulheres, velhos, apenas por serem judeus. Outros milhares foram massacrados por serem ciganos, homossexuais e pessoas com deficiência. O Brasil se orgulha de ter recebido muitos dos sobreviventes desse crime abominável, que não pode ser esquecido nem perdoado, quanto menos negado. O mesmo país que tentou oferecer um pouco de segurança e consolo a vítimas como Stefan Zweig e Anatol Rosenfeld agora estende honras a alguém que usa seu cargo para banalizar o mal absoluto?

As contradições não param por aí. O Brasil aceitou o Tratado de Não Proliferação Nuclear e, juntamente com a Argentina, firmou com a Agência Internacional de Energia Atômica um acordo de salvaguardas que abre nossas instalações nucleares ao escrutínio da ONU. Consolidou com isso suas credenciais de aspirante responsável ao Conselho de Segurança e expoente no mundo de uma cultura de paz ininterrupta há quase 140 anos com todos os vizinhos. Por que depreciar esse patrimônio para abraçar o chefe de um governo contra o qual o Conselho de Segurança cansou de aprovar resoluções não acatadas, exortando-o a deter suas atividades de proliferação?

Enfim, trata-se da indesejável visita de um símbolo da negação de tudo o que explica a projeção do Brasil no mundo. Essa projeção provém não das ameaças de bombas ou da coação econômica, que não praticamos, mas do exemplo de pacifismo e moderação, dos valores de democracia, direitos humanos e tolerância encarnados em nossa Constituição como a mais autêntica expressão da maneira de ser do povo brasileiro.

JOSÉ SERRA, 67, economista, é o governador de São Paulo. Foi senador pelo PSDB-SP (1995-2002) e ministro do Planejamento e da Saúde (governo Fernando Henrique Cardoso) e prefeito de São Paulo (2005-2006).

Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 23/11/09

Ahmadinejad e o desrespeito aos direitos humanos

A diplo-MÁ-cia brasileira segue o seu curso acelerado em direção ao não-reconhecimento dos direitos humanos, embora às vezes se compraza em dizer que faz precisamente o contrário. A visita do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, é mais um exemplo da omissão diplomática que beira a hipocrisia. Ela é posterior, por exemplo, ao constrangedor silêncio em relação a Darfur, no oeste do Sudão, onde tribos negras, não-muçulmanas, são massacradas por um governo islâmico radical, genocida. Trata-se de um genocídio em pleno século 21, com o qual o governo não deixa de pactuar, também em nome de conversas de "bastidores", supostamente mais eficazes. Os mortos que o digam! Enquanto isso, os assassinatos em massa prosseguem, com mais de 200 mil pessoas eliminadas, além das que são mutiladas por toda a vida. Na comemoração do Dia da Consciência Negra, essa é uma bandeira que deveria ter sido levantada com força, em nome da condenação mais enérgica do extermínio dessas tribos negras africanas.

A vinda de Ahmadinejad se faz, precisamente, depois de uma "eleição" condenada nacional e internacionalmente por ter sido fraudada, até por aiatolás do próprio regime, inclusive um ex-presidente e um ex-primeiro-ministro. Mesmo eles se insurgiram contra a guinada cada vez mais totalitária do regime, procurando, assim, distinguir duas formas de islamismo: o radical, de tendências totalitárias, e o que não o é. Foram escorraçados, menosprezados, e alguns de seus aliados e parentes, torturados e assassinados. Os clamores foram gerais, com a população ousando ir às ruas para protestar. E o fez com coragem, porque teve de se enfrentar com a famigerada "Guarda Revolucionária", uma espécie de SS do governo iraniano. Enquanto isso, o presidente Lula contentou-se em dizer que se tratava de um mero jogo de futebol, com os perdedores chiando por sua derrota. É uma afronta aos que, lá, lutam pela democracia, pelas liberdades.

O presidente iraniano tem em seu currículo, que mais se aproxima de uma folha corrida, uma série de declarações e atitudes que bem ilustram sua mentalidade totalitária. Não cessa de declarar a "inexistência do Holocausto judeu", que eliminou 6 milhões de pessoas, apenas por pertencerem a outro credo religioso. Prega a eliminação do Estado de Israel, imiscuindo-se diretamente nos conflitos do Oriente Médio, armando e financiando o Hamas e o Hezbollah, que compartilham a mesma ideologia. Aliás, o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, condena energicamente essa ingerência na Faixa de Gaza. Deve-se, aqui, distinguir a recepção feita ao presidente da Autoridade Nacional Palestina, homem de paz e diálogo, que em tudo se diferencia do presidente iraniano. Misturar as duas coisas só pode ser fruto de desconhecimento ou de má-fé, sendo esta última alternativa a mais provável.

As perseguições feitas pelo governo Ahmadinejad atingem com força a Comunidade Bahá"i, pelo simples fato de se tratar de um credo religioso que diverge da religião oficial. O governo teocrático do Irã não suporta a divergência, a oposição, tudo identificando com condutas "desviantes", que devem ser eliminadas em nome da "saúde", da "pureza" política de seu regime. Comportamentos "desviantes" são também os dos homossexuais, objeto de condenações e perseguições, que bem revelam a natureza totalitária do regime dos aiatolás, avesso à tolerância religiosa, moral e política. As mulheres, igualmente, são consideradas seres inferiores, que não podem dispor da sua capacidade de livre escolha, devendo submeter-se a líderes religiosos que impõem seus códigos de conduta. Deve-se ressaltar que antes da chegada dos aiatolás ao poder as mulheres iranianas gozavam uma liberdade muito maior, a situação atual configurando um claro retrocesso.

Ora, é esse regime que o governo brasileiro toma por digno de acolhimento e, além do mais, considerando tudo o que se passa naquele país como sendo um mero produto de simples disputas internas. O nosso presidente ainda chegou a dizer que o projeto nuclear iraniano é "pacífico", por acreditar simplesmente na palavra de Ahmadinejad. Pode-se acreditar na palavra de uma pessoa que nega fatos históricos? Pode-se acreditar na palavra de uma pessoa que frauda as eleições em seu país? Pode-se acreditar na palavra de uma pessoa que elimina a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral? Pode-se acreditar na palavra de uma pessoa que impõe as suas decisões por intermédio de sua polícia política, sua SS, sua "Guarda Revolucionária"?

Procurar respaldar a diplo-MÁ-cia brasileira em nome de uma suposta não-ingerência em assuntos internos de outro país é mais uma hipocrisia manifesta, pois é isso, precisamente, que o Brasil está fazendo em Honduras, com a embaixada transformada em foco de insurgência bolivariana, também ela de corte totalitário. Contra todos os tratados internacionais, a embaixada concedeu não um "refúgio" a Manuel Zelaya, mas lhe ofereceu um quartel-general a partir do qual as diretrizes de Hugo Chávez são propagadas pelo mundo, graças à TeleSur, também lá instalada. A incoerência diplomática é patente no momento em que eleições constitucionalmente estipuladas, antes mesmo da deposição de Zelaya, estão para ser realizadas. A fraude eleitoral no Irã é elogiada, é assunto interno, enquanto as eleições hondurenhas são condenadas. Parece que a nossa diplo-MÁ-cia tem uma afinidade eletiva com regimes totalitários, algo nunca antes visto em nossa história diplomática. O tal do diálogo Sul-Sul nada mais é do que uma máscara que vela uma opção pelo desrespeito progressivo a escolhas democráticas e aos direitos humanos. Se esse é o preço a ser pago por um assento no Conselho de Segurança da ONU, a pergunta que se impõe é a seguinte: vale o preço?

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo 23/11/2009.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Harmonia dos Poderes?

"Independência e harmonia dos Poderes são indispensáveis para o fortalecimento da democracia e para o país"

CHARLES-LOUIS de Secondat, ou Charles de Montesquieu, nasceu em 18 de janeiro de 1689 em Bordeaux, França, e morreu em 10 de fevereiro de 1755, em Paris. Político, filósofo e escritor, ficou famoso pela sua teoria da separação dos Poderes, acolhida em muitas Constituições, inclusive a brasileira.
A teoria da tripartição dos Poderes do Estado foi desenvolvida por Montesquieu no livro "O Espírito das Leis", escrito em 1748. O autor partia das ideias do inglês John Locke. A tese da existência de três poderes remonta a Aristóteles, na obra "Política". Montesquieu dividiu os Poderes separando-os em Executivo, Judiciário e Legislativo.
As Constituições brasileiras acolheram a tese montesquiana. A Constituição cidadã de 1988, em seu artigo 2º, dispôs que os Poderes são independentes e harmônicos entre si, tornando tal disposição cláusula pétrea (artigo 60, parágrafo 4º, III). Tal determinação estaria sendo observada nos tempos atuais? Vejamos: o Executivo, com fundamento nos artigos 59, V e 62 da Constituição, editou centenas de medidas provisórias, a maioria delas sem os requisitos indispensáveis de relevância e urgência.
O Congresso Nacional teve suas pautas travadas, congestionadas, paralisando os trabalhos legislativos. E o que é mais grave: na tramitação de muitas das medidas provisórias foram acolhidas emendas que nada tinham a ver com o seu cerne, verdadeiras "emendas piratas" desnaturando a medida que sucedeu o decreto-lei e o processo legislativo.
É o Poder Executivo avançando na competência do Poder Legislativo, editando medidas provisórias sem os requisitos constitucionais de relevância e urgência. Felizmente, o presidente da Câmara, deputado e jurista Michel Temer (PMDB-SP), em boa hora interpretou corretamente a questão do travamento da pauta do Congresso e, com o apoio do Supremo Tribunal Federal, minorou os seus efeitos.
O jurista português José Joaquim Gomes Canotilho, em recente entrevista ao jornalista Juliano Basile (jornal "Valor Econômico" de 4 de novembro), diz acreditar que o Supremo Tribunal Federal esteja avançando em assuntos do Legislativo e do Executivo no que ele chama de "ativismo judicial exagerado".
Reconhece que, ao entrar nessas questões, o Supremo faz alertas aos outros Poderes, com mensagens positivas e busca de soluções para os problema brasileiros. O professor Canotilho é um dos principais constitucionalistas de Portugal (catedrático da Universidade de Coimbra) e defende que a Constituição deve ser um programa para o país.
O problema é que a Constituição brasileira de 1988 está sendo conduzida pelo Supremo Tribunal Federal, e ele pergunta se é função do Judiciário resolver questões como demarcações de reservas indígenas, infidelidade de políticos aos seus partidos e uso das algemas pela polícia.
O mestre português faz referência às súmulas vinculantes, compreendendo a tentativa de dar alguma ordem, mas o problema é que as elas se transformam em direitos constitucionais enquanto não são revogadas pelo próprio STF.
O professor Canotilho vê também um aspecto positivo no fato de o Supremo transformar julgamentos em alertas. Por exemplo, se o Congresso não aprova a lei de greve dos servidores públicos, o Supremo decide por analogia que os funcionários públicos terão de cumprir as regras da greve para o setor privado.
O Legislativo, igualmente, em determinadas decisões, teria invadido competência do Judiciário, ao julgar parlamentares acusados de desvios éticos, ao instalar comissões parlamentares de inquérito e agir como se Poder Judiciário fosse. Independência e harmonia dos Poderes são indispensáveis para o fortalecimento da democracia e, consequentemente, para o país.

RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA, 70, advogado, é presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas e da Fundação Nuce e Miguel Reale. Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo (2001-2002).

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Por que sou contra a vinda de Ahmadinejad ao Brasil

Aqui estamos novamente. Poderíamos pensar que o perigo passou. Quando Ahmadinejad decidiu adiar sua visita ao nosso país, poderíamos imaginar que talvez nossos governantes percebessem a insensatez desta presença entre nós. Mas, não... Cá estamos novamente, na iminência de receber este nefasto personagem em nosso solo, com honras de dignitário-mor. Dignitário... honras? Um crápula tirano deste calibre não mereceria nem ser citado diante destas nobres palavras, quanto mais recepcionado como representante soberano de um país.
E tem mais! Desde o adiamento de sua visita ao Brasil, as ações de Ahmadinejad foram ainda mais ignóbeis, alimentando a revolta de seu próprio povo e da comunidade internacional.
O Irã foi amordaçado, forçado a render-se a uma minoria fundamentalista, que fraudou o processo democrático das eleições nacionais. Revoltas, mortes, apelos internacionais, nada demoveu Ahmadinejad de seu apetite por poder, de sua insana loucura. O Irã virou refém desta tirania.
Poderíamos pensar que Lula teria aprendido algo com os incidentes. Ingenuidade nossa! Lula, com sua histrionice, banalizou a importância de eleições dignas, comparando a legítima revolta dos iranianos a queixumes de torcidas esportivas. Imaginemos eleições fraudadas aqui e o que nosso governante teria dito, teria feito...
Na sequência, a História foi vilipendiada, o Holocausto simplesmente descartado por tão burlesco personagem. O mundo protestou, retirou-se do fórum maior de reunião das nações, a ONU, e Ahmadinejad nem pestanejou.
O presidente de nosso país, Lula, em setembro, dias após a declaração de Mahmoud Ahmadinejad em que ele diz que o Holocausto é uma mentira, encontrou-se em Nova York com este arremedo de estadista, apertando sua mão sem o menor constrangimento, como se grandes amigos fossem. Nosso presidente considera o Irã de Ahmadinejad um “grande sócio”, apesar de todas as preocupações que seu programa nuclear suscita.
Afinal, o que é que podemos esperar de um “grande sócio” ditador, bélico e fantasioso? Enquanto o mundo sente o cabelo da espinha arrepiar diante do perigo iraniano, o Brasil de Lula acha legítimo, em nome de interesses comerciais, aliar-se a anti-semitas lunáticos.
Perdoem-me a insistência! Sei que já estivemos aqui, que já enfatizei meu repúdio e meu protesto por esta relação quase criminosa, mas não há como calar-me diante do enorme tropeço diplomático prestes a acontecer em nosso país.
Talvez a visita iminente de Ahmadinejad não possa ser impedida. Mas não devemos nos calar. Temos a obrigação de assinalar o incomensurável desacerto de nossa diplomacia. Devemos denunciar a quatro ventos nossa indignação. O povo tem que saber que não estamos dispostos a ‘vender’ nosso país! O povo tem que saber que estamos do lado da verdade histórica, da grande comunidade internacional. O povo tem que saber que estamos do lado da paz e não da megalomania de guerra deste senhor, Mahmoud Ahmadinejad.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Para onde vamos?

A enxurrada de decisões governamentais esdrúxulas, frases presidenciais aparentemente sem sentido e muita propaganda talvez levem as pessoas de bom senso a se perguntarem: afinal, para onde vamos? Coloco o advérbio "talvez" porque alguns estão de tal modo inebriados com "o maior espetáculo da Terra", de riqueza fácil que beneficia poucos, que tenho dúvidas. Parece mais confortável fazer de conta que tudo vai bem e esquecer as transgressões cotidianas, o discricionarismo das decisões, o atropelo, se não da lei, dos bons costumes. Tornou-se habitual dizer que o governo Lula deu continuidade ao que de bom foi feito pelo governo anterior e ainda por cima melhorou muita coisa. Então, por que e para que questionar os pequenos desvios de conduta ou pequenos arranhões na lei?

Só que cada pequena transgressão, cada desvio vai se acumulando até desfigurar o original. Como dizia o famoso príncipe tresloucado, nesta loucura há método. Método que provavelmente não advém do nosso príncipe, apenas vítima, quem sabe, de apoteose verbal. Mas tudo o que o cerca possui um DNA que, mesmo sem conspiração alguma, pode levar o País, devagarzinho, quase sem que se perceba, a moldar-se a um estilo de política e a uma forma de relacionamento entre Estado, economia e sociedade que pouco têm que ver com nossos ideais democráticos.

É possível escolher ao acaso os exemplos de "pequenos assassinatos". Por que fazer o Congresso engolir, sem tempo para respirar, uma mudança na legislação do petróleo mal explicada, mal-ajambrada? Mudança que nem sequer pode ser apresentada como uma bandeira "nacionalista", pois, se o sistema atual, de concessões, fosse "entreguista", deveria ter sido banido, e não foi. Apenas se juntou a ele o sistema de partilha, sujeito a três ou quatro instâncias político-burocráticas para dificultar a vida dos empresários e cevar os facilitadores de negócios na máquina pública. Por que anunciar quem venceu a concorrência para a compra de aviões militares, se o processo de seleção não terminou? Por que tanto ruído e tanta ingerência governamental numa companhia (a Vale) que, se não é totalmente privada, possui capital misto regido pelo estatuto das empresas privadas? Por que antecipar a campanha eleitoral e, sem nenhum pudor, passear pelo Brasil à custa do Tesouro (tirando dinheiro do seu, do meu, do nosso bolso...) exibindo uma candidata claudicante? Por que, na política externa, esquecer-se de que no Irã há forças democráticas, muçulmanas inclusive, que lutam contra Ahmadinejad e fazer mesuras a quem não se preocupa com a paz ou os direitos humanos?

Pouco a pouco, por trás do que podem parecer gestos isolados e nem tão graves assim, o DNA do "autoritarismo popular" vai minando o espírito da democracia constitucional. Esta supõe regras, informação, participação, representação e deliberação consciente. Na contramão disso tudo, vamos regressando a formas políticas do tempo do autoritarismo militar, quando os "projetos de impacto" (alguns dos quais viraram "esqueletos", quer dizer, obras que deixaram penduradas no Tesouro dívidas impagáveis) animavam as empreiteiras e inflavam os corações dos ilusos: "Brasil, ame-o ou deixe-o." Em pauta temos a Transnordestina, o trem-bala, a Norte-Sul, a transposição do São Francisco e as centenas de pequenas obras do PAC, que, boas algumas, outras nem tanto, jorram aos borbotões no Orçamento e mínguam pela falta de competência operacional ou por desvios barrados pelo Tribunal de Contas da União. Não importa, no alarido da publicidade, é como se o povo já fruísse os benefícios: "Minha Casa, Minha Vida"; biodiesel de mamona, redenção da agricultura familiar; etanol para o mundo e, na voragem de novos slogans, pré-sal para todos.

Diferentemente do que ocorria com o autoritarismo militar, o atual não põe ninguém na cadeia. Mas da própria boca presidencial saem impropérios para matar moralmente empresários, políticos, jornalistas ou quem quer que seja que ouse discordar do estilo "Brasil potência". Até mesmo a apologia da bomba atômica como instrumento para que cheguemos ao Conselho de Segurança da ONU - contra a letra expressa da Constituição - vez por outra é defendida por altos funcionários, sem que se pergunte à cidadania qual o melhor rumo para o Brasil. Até porque o presidente já declarou que em matéria de objetivos estratégicos (como a compra dos caças) ele resolve sozinho. Pena que se tenha esquecido de acrescentar: "L"État c"est moi." Mas não se esqueceu de dar as razões que o levaram a tal decisão estratégica: viu que havia piratas na Somália e, portanto, precisamos de aviões de caça para defender o "nosso pré-sal". Está bem, tudo muito lógico.

Pode ser grave, mas, dirão os realistas, o tempo passa e o que fica são os resultados. Entre estes, contudo, há alguns preocupantes. Se há lógica nos despautérios, ela é uma só: a do poder sem limites. Poder presidencial com aplausos do povo, como em toda boa situação autoritária, e poder burocrático-corporativo, sem graça alguma para o povo. Este último tem método. Estado e sindicatos, Estado e movimentos sociais estão cada vez mais fundidos nos altos-fornos do Tesouro. Os partidos estão desmoralizados. Foi no "dedaço" que Lula escolheu a candidata do PT à sucessão, como faziam os presidentes mexicanos nos tempos do predomínio do PRI. Devastados os partidos, se Dilma ganhar as eleições sobrará um subperonismo (o lulismo) contagiando os dóceis fragmentos partidários, uma burocracia sindical aninhada no Estado e, como base do bloco de poder, a força dos fundos de pensão. Estes são "estrelas novas". Surgiram no firmamento, mudaram de trajetória e nossos vorazes, mas ingênuos capitalistas recebem deles o abraço da morte. Com uma ajudinha do BNDES, então, tudo fica perfeito: temos a aliança entre o Estado, os sindicatos, os fundos de pensão e os felizardos de grandes empresas que a eles se associam.

Ora, dirão (já que falei de estrelas), os fundos de pensão constituem a mola da economia moderna. É certo. Só que os nossos pertencem a funcionários de empresas públicas. Ora, nessas, o PT, que já dominava a representação dos empregados, domina agora a dos empregadores (governo). Com isso os fundos se tornaram instrumentos de poder político, não propriamente de um partido, mas do segmento sindical-corporativo que o domina. No Brasil os fundos de pensão não são apenas acionistas - com a liberdade de vender e comprar em bolsas -, mas gestores: participam dos blocos de controle ou dos conselhos de empresas privadas ou "privatizadas". Partidos fracos, sindicatos fortes, fundos de pensão convergindo com os interesses de um partido no governo e para eles atraindo sócios privados privilegiados, eis o bloco sobre o qual o subperonismo lulista se sustentará no futuro, se ganhar as eleições. Comecei com para onde vamos? Termino dizendo que é mais do que tempo de dar um basta ao continuísmo, antes que seja tarde.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República
Publicado em 01/11/2009 - Jornal O Estado de São Paulo