quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

FHC é 11º em lista dos 100 pensadores globais do ano

Escolha foi feita por conta dos comentários que o ex-presidente brasileiro fez sobre a guerra contra as drogas. Lista ainda inclui o americano Barack Obama e a iraniana Zahra Rahnavard

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ficou em 11º na lista dos 100 Pensadores Globais de 2009 feita pela revista Foreign Policy, publicação americana especializada em temas internacionais. A escolha, segundo a revista, se deve aos comentários e discussões fomentadas por FHC ao longo de 2009 sobre drogas. Em fevereiro, o brasileiro, com apoio de outras personalidades latino-americanas, atacou a política de guerra contra as drogas, mantida principalmente pelo governo dos Estados Unidos.

No Wall Street Journal, em um artigo assinado com os ex-presidentes e economistas César Gaviria, da Colômbia, e Ernesto Zedillo, do México, FHC afirmou que a guerra contra as drogas é um "fracasso". "Políticas proibicionistas baseadas em erradicação, interdição e criminalização do consumo simplesmente não funcionaram." FHC, junto com os outros membros da Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, defende que a questão deve ser encarada como um problema global de saúde, e não somente como caso de polícia.

Lembrando da carreira política de FHC, a Foreign Policy afirma que, quando foi presidente do Brasil, ele "balançou o enorme porém letárgico mercado brasileiro de volta à vida com uma política fiscal dura e programas sociais pioneiros". Aqui, entretanto, o ex-presidente não anda assim tão popular. A última pesquisa CNT/Sensus de intenção de votos para as eleições presidenciais de 2010 mostrou que 49,3% dos eleitores não pretendem votar em um candidato que seja recomendado por FHC.

O topo do ranking ficou com Ben Bernanke, presidente do Federal Reserve (Fed), o Banco Central dos Estados Unidos, escolhido pela Foreign Policy por "salvar a economia americana do colapso" e "reinventar o papel de um banco central". Barack Obama, que meses antes de completar seu primeiro ano de mandato como presidente dos EUA ganhou o Nobel da Paz, ficou em segundo lugar, posição conquistada "por recriar o papel da América no mundo".

Em terceiro ficou a iraniana Zahra Rahnavard, doutora em Ciência Política, considerada a principal líder dos protestos que ficaram conhecidos como "Revolução Verde" e marcaram o Irã - e a internet - em junho deste ano, depois das eleições presidenciais. Rahnavard é casada com Mir Hossein Mousavi, principal candidato de oposição, derrotado por nas eleições pelo presidente Mahmoud Ahmadinejad.

Fareed Zakaria, editor-chefe da edição internacional da revista Newsweek, e Christopher Hitchens, colunista da Vanity Fair e da Slate, que escrevem quinzenalmente em ÉPOCA, também apareceram no ranking da Foreign Policy. Hitchens, em 47º, "por provocar em toda oportunidade a sabedoria recebida", e Zakaria, em 37º, "por definir os limites do poder americano e convocar o público mais inteligente para conversar sobre isso".

A lista ainda inclui o casal Bill e Hillary Clinton, em 6º; Richard Dawkins, biólogo, conhecido por ataques contra a religião, em 18º; Thomas Friedman, jornalista e colunista do New York Times, em 21º; Chris Anderson, físico e jornalista, editor-chefe da revista Wired, em 24º; Linus Torvalds, engenheiro de software finlandês que empresta seu nome ao sistema operacional Linux, em 53º; e Gordon Brown, primeiro-ministro inglês, em 74º.

Prestígio Como pensador, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é bastante admirado no exterior

REDAÇÃO ÉPOCA
Valter Campanato/ABr

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Visita indesejável

O mesmo país que tentou oferecer segurança e consolo a vítimas do Holocausto estende honras a quem banaliza o mal absoluto?

É DESCONFORTÁVEL recebermos no Brasil o chefe de um regime ditatorial e repressivo. Afinal, temos um passado recente de luta contra a ditadura e firmamos na Constituição de 1988 os ideais de democracia e direitos humanos. Uma coisa são relações diplomáticas com ditaduras, outra é hospedar em casa os seus chefes.

O presidente Ahmadinejad, do Irã, acaba de ser reconduzido ao poder por eleições notoriamente fraudulentas. A fraude foi tão ostensiva que dura até hoje no país a onda de revolta desencadeada. Passados vários meses, os participantes de protestos pacíficos são brutalizados por bandos fascistas que não hesitam em assassinar manifestantes indefesos, como a jovem estudante que se tornou símbolo mundial da resistência iraniana. Presos, torturados, sexualmente violentados nas prisões, os opositores são condenados, alguns à morte, em julgamentos monstros que lembram os processos estalinistas de Moscou.

Como reagiríamos se apenas um décimo disso estivesse ocorrendo no Paraguai ou, digamos, em Honduras, onde nos mostramos tão indignados ao condenar a destituição de um presidente? Enquanto em Tegucigalpa nos negamos a aceitar o mínimo contacto com o governo de fato, tem sentido receber de braços abertos o homem cujo ministro da Defesa é procurado pela Interpol devido ao atentado ao centro comunitário judaico em Buenos Aires, que causou em 1994 a morte de 85 pessoas?

A acusação nesse caso não provém dos americanos ou israelenses. Foi por iniciativa do governo argentino que o nome foi incluído na lista dos terroristas buscados pela Justiça. Se Brasília tem dúvidas, por que não pergunta à nossa amiga, a presidente Cristina Kirchner?

Democracia e direitos humanos são indivisíveis e devem ser defendidos em qualquer parte do mundo. É incoerente proceder como se esses valores perdessem importância na razão direta do afastamento geográfico. Tampouco é admissível honrar os que deram a vida para combater a ditadura no Brasil, na Argentina, no Chile e confratenizar-se com os que torturam e condenam à morte os opositores no Irã. Com que autoridade festejaremos em março de 2010 os 25 anos do fim da ditadura e do início da Nova República?

O extremismo e o gosto de provocação em Ahmadinejad o converteram no mais tristemente célebre negador do Holocausto, o diabólico extermínio de milhões de seres humanos, crianças, mulheres, velhos, apenas por serem judeus. Outros milhares foram massacrados por serem ciganos, homossexuais e pessoas com deficiência. O Brasil se orgulha de ter recebido muitos dos sobreviventes desse crime abominável, que não pode ser esquecido nem perdoado, quanto menos negado. O mesmo país que tentou oferecer um pouco de segurança e consolo a vítimas como Stefan Zweig e Anatol Rosenfeld agora estende honras a alguém que usa seu cargo para banalizar o mal absoluto?

As contradições não param por aí. O Brasil aceitou o Tratado de Não Proliferação Nuclear e, juntamente com a Argentina, firmou com a Agência Internacional de Energia Atômica um acordo de salvaguardas que abre nossas instalações nucleares ao escrutínio da ONU. Consolidou com isso suas credenciais de aspirante responsável ao Conselho de Segurança e expoente no mundo de uma cultura de paz ininterrupta há quase 140 anos com todos os vizinhos. Por que depreciar esse patrimônio para abraçar o chefe de um governo contra o qual o Conselho de Segurança cansou de aprovar resoluções não acatadas, exortando-o a deter suas atividades de proliferação?

Enfim, trata-se da indesejável visita de um símbolo da negação de tudo o que explica a projeção do Brasil no mundo. Essa projeção provém não das ameaças de bombas ou da coação econômica, que não praticamos, mas do exemplo de pacifismo e moderação, dos valores de democracia, direitos humanos e tolerância encarnados em nossa Constituição como a mais autêntica expressão da maneira de ser do povo brasileiro.

JOSÉ SERRA, 67, economista, é o governador de São Paulo. Foi senador pelo PSDB-SP (1995-2002) e ministro do Planejamento e da Saúde (governo Fernando Henrique Cardoso) e prefeito de São Paulo (2005-2006).

Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 23/11/09

Ahmadinejad e o desrespeito aos direitos humanos

A diplo-MÁ-cia brasileira segue o seu curso acelerado em direção ao não-reconhecimento dos direitos humanos, embora às vezes se compraza em dizer que faz precisamente o contrário. A visita do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, é mais um exemplo da omissão diplomática que beira a hipocrisia. Ela é posterior, por exemplo, ao constrangedor silêncio em relação a Darfur, no oeste do Sudão, onde tribos negras, não-muçulmanas, são massacradas por um governo islâmico radical, genocida. Trata-se de um genocídio em pleno século 21, com o qual o governo não deixa de pactuar, também em nome de conversas de "bastidores", supostamente mais eficazes. Os mortos que o digam! Enquanto isso, os assassinatos em massa prosseguem, com mais de 200 mil pessoas eliminadas, além das que são mutiladas por toda a vida. Na comemoração do Dia da Consciência Negra, essa é uma bandeira que deveria ter sido levantada com força, em nome da condenação mais enérgica do extermínio dessas tribos negras africanas.

A vinda de Ahmadinejad se faz, precisamente, depois de uma "eleição" condenada nacional e internacionalmente por ter sido fraudada, até por aiatolás do próprio regime, inclusive um ex-presidente e um ex-primeiro-ministro. Mesmo eles se insurgiram contra a guinada cada vez mais totalitária do regime, procurando, assim, distinguir duas formas de islamismo: o radical, de tendências totalitárias, e o que não o é. Foram escorraçados, menosprezados, e alguns de seus aliados e parentes, torturados e assassinados. Os clamores foram gerais, com a população ousando ir às ruas para protestar. E o fez com coragem, porque teve de se enfrentar com a famigerada "Guarda Revolucionária", uma espécie de SS do governo iraniano. Enquanto isso, o presidente Lula contentou-se em dizer que se tratava de um mero jogo de futebol, com os perdedores chiando por sua derrota. É uma afronta aos que, lá, lutam pela democracia, pelas liberdades.

O presidente iraniano tem em seu currículo, que mais se aproxima de uma folha corrida, uma série de declarações e atitudes que bem ilustram sua mentalidade totalitária. Não cessa de declarar a "inexistência do Holocausto judeu", que eliminou 6 milhões de pessoas, apenas por pertencerem a outro credo religioso. Prega a eliminação do Estado de Israel, imiscuindo-se diretamente nos conflitos do Oriente Médio, armando e financiando o Hamas e o Hezbollah, que compartilham a mesma ideologia. Aliás, o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, condena energicamente essa ingerência na Faixa de Gaza. Deve-se, aqui, distinguir a recepção feita ao presidente da Autoridade Nacional Palestina, homem de paz e diálogo, que em tudo se diferencia do presidente iraniano. Misturar as duas coisas só pode ser fruto de desconhecimento ou de má-fé, sendo esta última alternativa a mais provável.

As perseguições feitas pelo governo Ahmadinejad atingem com força a Comunidade Bahá"i, pelo simples fato de se tratar de um credo religioso que diverge da religião oficial. O governo teocrático do Irã não suporta a divergência, a oposição, tudo identificando com condutas "desviantes", que devem ser eliminadas em nome da "saúde", da "pureza" política de seu regime. Comportamentos "desviantes" são também os dos homossexuais, objeto de condenações e perseguições, que bem revelam a natureza totalitária do regime dos aiatolás, avesso à tolerância religiosa, moral e política. As mulheres, igualmente, são consideradas seres inferiores, que não podem dispor da sua capacidade de livre escolha, devendo submeter-se a líderes religiosos que impõem seus códigos de conduta. Deve-se ressaltar que antes da chegada dos aiatolás ao poder as mulheres iranianas gozavam uma liberdade muito maior, a situação atual configurando um claro retrocesso.

Ora, é esse regime que o governo brasileiro toma por digno de acolhimento e, além do mais, considerando tudo o que se passa naquele país como sendo um mero produto de simples disputas internas. O nosso presidente ainda chegou a dizer que o projeto nuclear iraniano é "pacífico", por acreditar simplesmente na palavra de Ahmadinejad. Pode-se acreditar na palavra de uma pessoa que nega fatos históricos? Pode-se acreditar na palavra de uma pessoa que frauda as eleições em seu país? Pode-se acreditar na palavra de uma pessoa que elimina a liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral? Pode-se acreditar na palavra de uma pessoa que impõe as suas decisões por intermédio de sua polícia política, sua SS, sua "Guarda Revolucionária"?

Procurar respaldar a diplo-MÁ-cia brasileira em nome de uma suposta não-ingerência em assuntos internos de outro país é mais uma hipocrisia manifesta, pois é isso, precisamente, que o Brasil está fazendo em Honduras, com a embaixada transformada em foco de insurgência bolivariana, também ela de corte totalitário. Contra todos os tratados internacionais, a embaixada concedeu não um "refúgio" a Manuel Zelaya, mas lhe ofereceu um quartel-general a partir do qual as diretrizes de Hugo Chávez são propagadas pelo mundo, graças à TeleSur, também lá instalada. A incoerência diplomática é patente no momento em que eleições constitucionalmente estipuladas, antes mesmo da deposição de Zelaya, estão para ser realizadas. A fraude eleitoral no Irã é elogiada, é assunto interno, enquanto as eleições hondurenhas são condenadas. Parece que a nossa diplo-MÁ-cia tem uma afinidade eletiva com regimes totalitários, algo nunca antes visto em nossa história diplomática. O tal do diálogo Sul-Sul nada mais é do que uma máscara que vela uma opção pelo desrespeito progressivo a escolhas democráticas e aos direitos humanos. Se esse é o preço a ser pago por um assento no Conselho de Segurança da ONU, a pergunta que se impõe é a seguinte: vale o preço?

Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br
Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo 23/11/2009.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Harmonia dos Poderes?

"Independência e harmonia dos Poderes são indispensáveis para o fortalecimento da democracia e para o país"

CHARLES-LOUIS de Secondat, ou Charles de Montesquieu, nasceu em 18 de janeiro de 1689 em Bordeaux, França, e morreu em 10 de fevereiro de 1755, em Paris. Político, filósofo e escritor, ficou famoso pela sua teoria da separação dos Poderes, acolhida em muitas Constituições, inclusive a brasileira.
A teoria da tripartição dos Poderes do Estado foi desenvolvida por Montesquieu no livro "O Espírito das Leis", escrito em 1748. O autor partia das ideias do inglês John Locke. A tese da existência de três poderes remonta a Aristóteles, na obra "Política". Montesquieu dividiu os Poderes separando-os em Executivo, Judiciário e Legislativo.
As Constituições brasileiras acolheram a tese montesquiana. A Constituição cidadã de 1988, em seu artigo 2º, dispôs que os Poderes são independentes e harmônicos entre si, tornando tal disposição cláusula pétrea (artigo 60, parágrafo 4º, III). Tal determinação estaria sendo observada nos tempos atuais? Vejamos: o Executivo, com fundamento nos artigos 59, V e 62 da Constituição, editou centenas de medidas provisórias, a maioria delas sem os requisitos indispensáveis de relevância e urgência.
O Congresso Nacional teve suas pautas travadas, congestionadas, paralisando os trabalhos legislativos. E o que é mais grave: na tramitação de muitas das medidas provisórias foram acolhidas emendas que nada tinham a ver com o seu cerne, verdadeiras "emendas piratas" desnaturando a medida que sucedeu o decreto-lei e o processo legislativo.
É o Poder Executivo avançando na competência do Poder Legislativo, editando medidas provisórias sem os requisitos constitucionais de relevância e urgência. Felizmente, o presidente da Câmara, deputado e jurista Michel Temer (PMDB-SP), em boa hora interpretou corretamente a questão do travamento da pauta do Congresso e, com o apoio do Supremo Tribunal Federal, minorou os seus efeitos.
O jurista português José Joaquim Gomes Canotilho, em recente entrevista ao jornalista Juliano Basile (jornal "Valor Econômico" de 4 de novembro), diz acreditar que o Supremo Tribunal Federal esteja avançando em assuntos do Legislativo e do Executivo no que ele chama de "ativismo judicial exagerado".
Reconhece que, ao entrar nessas questões, o Supremo faz alertas aos outros Poderes, com mensagens positivas e busca de soluções para os problema brasileiros. O professor Canotilho é um dos principais constitucionalistas de Portugal (catedrático da Universidade de Coimbra) e defende que a Constituição deve ser um programa para o país.
O problema é que a Constituição brasileira de 1988 está sendo conduzida pelo Supremo Tribunal Federal, e ele pergunta se é função do Judiciário resolver questões como demarcações de reservas indígenas, infidelidade de políticos aos seus partidos e uso das algemas pela polícia.
O mestre português faz referência às súmulas vinculantes, compreendendo a tentativa de dar alguma ordem, mas o problema é que as elas se transformam em direitos constitucionais enquanto não são revogadas pelo próprio STF.
O professor Canotilho vê também um aspecto positivo no fato de o Supremo transformar julgamentos em alertas. Por exemplo, se o Congresso não aprova a lei de greve dos servidores públicos, o Supremo decide por analogia que os funcionários públicos terão de cumprir as regras da greve para o setor privado.
O Legislativo, igualmente, em determinadas decisões, teria invadido competência do Judiciário, ao julgar parlamentares acusados de desvios éticos, ao instalar comissões parlamentares de inquérito e agir como se Poder Judiciário fosse. Independência e harmonia dos Poderes são indispensáveis para o fortalecimento da democracia e, consequentemente, para o país.

RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA, 70, advogado, é presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas e da Fundação Nuce e Miguel Reale. Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo (2001-2002).

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Por que sou contra a vinda de Ahmadinejad ao Brasil

Aqui estamos novamente. Poderíamos pensar que o perigo passou. Quando Ahmadinejad decidiu adiar sua visita ao nosso país, poderíamos imaginar que talvez nossos governantes percebessem a insensatez desta presença entre nós. Mas, não... Cá estamos novamente, na iminência de receber este nefasto personagem em nosso solo, com honras de dignitário-mor. Dignitário... honras? Um crápula tirano deste calibre não mereceria nem ser citado diante destas nobres palavras, quanto mais recepcionado como representante soberano de um país.
E tem mais! Desde o adiamento de sua visita ao Brasil, as ações de Ahmadinejad foram ainda mais ignóbeis, alimentando a revolta de seu próprio povo e da comunidade internacional.
O Irã foi amordaçado, forçado a render-se a uma minoria fundamentalista, que fraudou o processo democrático das eleições nacionais. Revoltas, mortes, apelos internacionais, nada demoveu Ahmadinejad de seu apetite por poder, de sua insana loucura. O Irã virou refém desta tirania.
Poderíamos pensar que Lula teria aprendido algo com os incidentes. Ingenuidade nossa! Lula, com sua histrionice, banalizou a importância de eleições dignas, comparando a legítima revolta dos iranianos a queixumes de torcidas esportivas. Imaginemos eleições fraudadas aqui e o que nosso governante teria dito, teria feito...
Na sequência, a História foi vilipendiada, o Holocausto simplesmente descartado por tão burlesco personagem. O mundo protestou, retirou-se do fórum maior de reunião das nações, a ONU, e Ahmadinejad nem pestanejou.
O presidente de nosso país, Lula, em setembro, dias após a declaração de Mahmoud Ahmadinejad em que ele diz que o Holocausto é uma mentira, encontrou-se em Nova York com este arremedo de estadista, apertando sua mão sem o menor constrangimento, como se grandes amigos fossem. Nosso presidente considera o Irã de Ahmadinejad um “grande sócio”, apesar de todas as preocupações que seu programa nuclear suscita.
Afinal, o que é que podemos esperar de um “grande sócio” ditador, bélico e fantasioso? Enquanto o mundo sente o cabelo da espinha arrepiar diante do perigo iraniano, o Brasil de Lula acha legítimo, em nome de interesses comerciais, aliar-se a anti-semitas lunáticos.
Perdoem-me a insistência! Sei que já estivemos aqui, que já enfatizei meu repúdio e meu protesto por esta relação quase criminosa, mas não há como calar-me diante do enorme tropeço diplomático prestes a acontecer em nosso país.
Talvez a visita iminente de Ahmadinejad não possa ser impedida. Mas não devemos nos calar. Temos a obrigação de assinalar o incomensurável desacerto de nossa diplomacia. Devemos denunciar a quatro ventos nossa indignação. O povo tem que saber que não estamos dispostos a ‘vender’ nosso país! O povo tem que saber que estamos do lado da verdade histórica, da grande comunidade internacional. O povo tem que saber que estamos do lado da paz e não da megalomania de guerra deste senhor, Mahmoud Ahmadinejad.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Para onde vamos?

A enxurrada de decisões governamentais esdrúxulas, frases presidenciais aparentemente sem sentido e muita propaganda talvez levem as pessoas de bom senso a se perguntarem: afinal, para onde vamos? Coloco o advérbio "talvez" porque alguns estão de tal modo inebriados com "o maior espetáculo da Terra", de riqueza fácil que beneficia poucos, que tenho dúvidas. Parece mais confortável fazer de conta que tudo vai bem e esquecer as transgressões cotidianas, o discricionarismo das decisões, o atropelo, se não da lei, dos bons costumes. Tornou-se habitual dizer que o governo Lula deu continuidade ao que de bom foi feito pelo governo anterior e ainda por cima melhorou muita coisa. Então, por que e para que questionar os pequenos desvios de conduta ou pequenos arranhões na lei?

Só que cada pequena transgressão, cada desvio vai se acumulando até desfigurar o original. Como dizia o famoso príncipe tresloucado, nesta loucura há método. Método que provavelmente não advém do nosso príncipe, apenas vítima, quem sabe, de apoteose verbal. Mas tudo o que o cerca possui um DNA que, mesmo sem conspiração alguma, pode levar o País, devagarzinho, quase sem que se perceba, a moldar-se a um estilo de política e a uma forma de relacionamento entre Estado, economia e sociedade que pouco têm que ver com nossos ideais democráticos.

É possível escolher ao acaso os exemplos de "pequenos assassinatos". Por que fazer o Congresso engolir, sem tempo para respirar, uma mudança na legislação do petróleo mal explicada, mal-ajambrada? Mudança que nem sequer pode ser apresentada como uma bandeira "nacionalista", pois, se o sistema atual, de concessões, fosse "entreguista", deveria ter sido banido, e não foi. Apenas se juntou a ele o sistema de partilha, sujeito a três ou quatro instâncias político-burocráticas para dificultar a vida dos empresários e cevar os facilitadores de negócios na máquina pública. Por que anunciar quem venceu a concorrência para a compra de aviões militares, se o processo de seleção não terminou? Por que tanto ruído e tanta ingerência governamental numa companhia (a Vale) que, se não é totalmente privada, possui capital misto regido pelo estatuto das empresas privadas? Por que antecipar a campanha eleitoral e, sem nenhum pudor, passear pelo Brasil à custa do Tesouro (tirando dinheiro do seu, do meu, do nosso bolso...) exibindo uma candidata claudicante? Por que, na política externa, esquecer-se de que no Irã há forças democráticas, muçulmanas inclusive, que lutam contra Ahmadinejad e fazer mesuras a quem não se preocupa com a paz ou os direitos humanos?

Pouco a pouco, por trás do que podem parecer gestos isolados e nem tão graves assim, o DNA do "autoritarismo popular" vai minando o espírito da democracia constitucional. Esta supõe regras, informação, participação, representação e deliberação consciente. Na contramão disso tudo, vamos regressando a formas políticas do tempo do autoritarismo militar, quando os "projetos de impacto" (alguns dos quais viraram "esqueletos", quer dizer, obras que deixaram penduradas no Tesouro dívidas impagáveis) animavam as empreiteiras e inflavam os corações dos ilusos: "Brasil, ame-o ou deixe-o." Em pauta temos a Transnordestina, o trem-bala, a Norte-Sul, a transposição do São Francisco e as centenas de pequenas obras do PAC, que, boas algumas, outras nem tanto, jorram aos borbotões no Orçamento e mínguam pela falta de competência operacional ou por desvios barrados pelo Tribunal de Contas da União. Não importa, no alarido da publicidade, é como se o povo já fruísse os benefícios: "Minha Casa, Minha Vida"; biodiesel de mamona, redenção da agricultura familiar; etanol para o mundo e, na voragem de novos slogans, pré-sal para todos.

Diferentemente do que ocorria com o autoritarismo militar, o atual não põe ninguém na cadeia. Mas da própria boca presidencial saem impropérios para matar moralmente empresários, políticos, jornalistas ou quem quer que seja que ouse discordar do estilo "Brasil potência". Até mesmo a apologia da bomba atômica como instrumento para que cheguemos ao Conselho de Segurança da ONU - contra a letra expressa da Constituição - vez por outra é defendida por altos funcionários, sem que se pergunte à cidadania qual o melhor rumo para o Brasil. Até porque o presidente já declarou que em matéria de objetivos estratégicos (como a compra dos caças) ele resolve sozinho. Pena que se tenha esquecido de acrescentar: "L"État c"est moi." Mas não se esqueceu de dar as razões que o levaram a tal decisão estratégica: viu que havia piratas na Somália e, portanto, precisamos de aviões de caça para defender o "nosso pré-sal". Está bem, tudo muito lógico.

Pode ser grave, mas, dirão os realistas, o tempo passa e o que fica são os resultados. Entre estes, contudo, há alguns preocupantes. Se há lógica nos despautérios, ela é uma só: a do poder sem limites. Poder presidencial com aplausos do povo, como em toda boa situação autoritária, e poder burocrático-corporativo, sem graça alguma para o povo. Este último tem método. Estado e sindicatos, Estado e movimentos sociais estão cada vez mais fundidos nos altos-fornos do Tesouro. Os partidos estão desmoralizados. Foi no "dedaço" que Lula escolheu a candidata do PT à sucessão, como faziam os presidentes mexicanos nos tempos do predomínio do PRI. Devastados os partidos, se Dilma ganhar as eleições sobrará um subperonismo (o lulismo) contagiando os dóceis fragmentos partidários, uma burocracia sindical aninhada no Estado e, como base do bloco de poder, a força dos fundos de pensão. Estes são "estrelas novas". Surgiram no firmamento, mudaram de trajetória e nossos vorazes, mas ingênuos capitalistas recebem deles o abraço da morte. Com uma ajudinha do BNDES, então, tudo fica perfeito: temos a aliança entre o Estado, os sindicatos, os fundos de pensão e os felizardos de grandes empresas que a eles se associam.

Ora, dirão (já que falei de estrelas), os fundos de pensão constituem a mola da economia moderna. É certo. Só que os nossos pertencem a funcionários de empresas públicas. Ora, nessas, o PT, que já dominava a representação dos empregados, domina agora a dos empregadores (governo). Com isso os fundos se tornaram instrumentos de poder político, não propriamente de um partido, mas do segmento sindical-corporativo que o domina. No Brasil os fundos de pensão não são apenas acionistas - com a liberdade de vender e comprar em bolsas -, mas gestores: participam dos blocos de controle ou dos conselhos de empresas privadas ou "privatizadas". Partidos fracos, sindicatos fortes, fundos de pensão convergindo com os interesses de um partido no governo e para eles atraindo sócios privados privilegiados, eis o bloco sobre o qual o subperonismo lulista se sustentará no futuro, se ganhar as eleições. Comecei com para onde vamos? Termino dizendo que é mais do que tempo de dar um basta ao continuísmo, antes que seja tarde.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República
Publicado em 01/11/2009 - Jornal O Estado de São Paulo

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A ética da política

A crise política sem fim e sem precedentes sugere algumas reflexões sobre o problema da ética na política. Nenhuma profissão é mais nobre do que a política porque quem a exerce assume responsabilidades só compatíveis com grandes qualidades morais e de competência. A atividade política só se justifica se o político tiver espírito republicano, ou seja, se suas ações, além de buscarem a conquista do poder, forem dirigidas para o bem público, que não é fácil definir, mas que é preciso sempre buscar. Um bem público que variará de acordo com a ideologia ou os valores de cada político, mas o qual se espera que ele busque com prudência e coragem. E nenhuma profissão é mais importante, porque o político, na sua capacidade de definir instituições e tomar decisões estratégicas na vida das nações, tem uma influência sobre a vida das pessoas maior do que a de qualquer outra profissão.

A ética da política, porém, não é a mesma ética da vida pessoal. É claro que existem princípios gerais, como não matar ou não roubar, mas entre a ética pessoal e a ética política há uma diferença básica: na vida pessoal deve-se esperar que cada indivíduo aja de acordo com o que Max Weber chamou a ética da convicção, ou seja, a ética dos princípios morais aceitos em cada sociedade já na política prevalece a ética da responsabilidade.

A ética da responsabilidade leva em consideração as consequumlências das decisões que o político adota. Em muitas ocasiões, o político é obrigado a tomar decisões que envolvem meios não muito nobres para alcançar os objetivos públicos. O político, por exemplo, não tem alternativa senão fazer compromissos para alcançar maiorias.

A expressão ldquoética da responsabilidaderdquo é uma forma mitigada do clássico princípio republicano de Maquiavel de que os fins justificam os meios. Para o grande pensador florentino, fundador do republicanismo moderno, o interesse público era o critério essencial, mas diferentemente do conceito de ética da responsabilidade, ele justificava praticamente qualquer meio desde que visasse o interesse público.

Nessa contradição entre os fins públicos e os meios existe um problema de grau. É claro que o político deve ser fiel à sua visão do bem público, mas não pode ser radical tanto em relação aos fins nem aos meios. Não pode acreditar que detém o monopólio da definição desse bem: o político democrático e republicano tem a sua visão do interesse comum, mas respeita a dos outros. Por outro lado, ainda que o uso de meios discutíveis possa ser justificado em certas circunstâncias, é evidente que não podem ser quaisquer os meios utilizados. É preciso aqui também ser razoável: alguns meios são absolutamente condenáveis e portanto injustificáveis. Foi por isso que Weber, ao invés de ficar com a ética de Maquiavel, preferiu falar em ética da responsabilidade, para poder enfatizar o fator grau na escolha tanto dos fins quanto dos meios.

O político deve agir de acordo com a ética da responsabilidade, porque essa é a única ética compatível com o espírito republicano. Um grande número de políticos, porém, não age de acordo com ela. Muitos agem imoralmente como temos visto nesta crise. Sugiro que, adotando os critérios anteriores, há três tipos de imoralidade na política: imoralidade quanto aos meios, quanto aos fins, e quanto aos meios e aos fins.

A imoralidade quanto aos meios é aquela que resulta de os meios utilizados serem definitivamente condenáveis. A imoralidade quanto aos fins é aquela que se materializa quando falta ao político a noção de bem público: ainda que seu discurso possa afirmar valores, ele realmente busca apenas seu poder ou seu enriquecimento, ou ambos. Neste caso configura-se o político oportunista, que não tem outro critério senão seu próprio interesse. Há certos casos, em que a imoralidade é apenas em relação aos meios, outros, apenas quanto aos fins, mas geralmente é uma imoralidade tanto os meios quanto os fins: o político usa de quaisquer meios para atingir seus fins pessoais. Neste caso temos a imoralidade absoluta, o oportunismo, radical.

Quando pensamos nos principais responsáveis pela atual crise moral, o que vemos é que poucos foram imorais apenas em relação aos meios, utilizando meios condenáveis como a corrupção e o suborno, mas se mantendo fiéis a seus valores. A maioria é constituída de políticos que traíram todos os seus compromissos e passaram a adotar políticas econômicas que até o dia anterior criticavam acerbamente. Não agiram de acordo com a ética da responsabilidade ou mesmo com a ética de Maquiavel, mas de acordo apenas com seu interesse em se compor com os poderosos ou com os que pensam serem os poderosos aqui e no exterior. Seu único objetivo era e continua a ser sua permanência no poder. Um desses políticos acabou de perder o poder em um dos episódios mais lamentáveis de nossa história o outro continua a fazer campanha como se não fosse responsável por nada. Esse tipo de política, porém, tem vida curta nas democracias.

Luiz Carlos Bresser-Pereira
FolhaSP

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Os perigos do triunfalismo

Embalado por uma sequência de notícias positivas, o Brasil respira um clima de otimismo. A retórica do presidente e a propaganda do governo tratam de lhes dar a mais ampla repercussão e extrair-lhes o máximo simbolismo possível. A mensagem subliminar ecoa o velho "ninguém segura este país", bordão repetido ad nauseam nos tempos do "milagre brasileiro" e da ditadura militar. Há boas e sólidas razões para ser otimista no Brasil de hoje. Não menos sólidas, porém, são as razões para evitar o triunfalismo, tanto mais quando surge acompanhado da revalorização anacrônica do Estado empreendedor.

Copa do Mundo em 2014 e Olimpíada em 2016, quem pode torcer o nariz? Daí a dizer, como disse o presidente, que não há que se preocupar com os gastos, pois todo o centavo utilizado será investimento, vai uma enorme distância. A fala presidencial mostra o primeiro perigo do triunfalismo: o de gastar além da conta e, pior, gastar mal.

O horizonte de médio prazo para as contas públicas tem nuvens, formadas por um acúmulo de decisões recentes do governo federal que implicam aumento permanente nos gastos correntes, em especial com pessoal. A redução da meta de superávit primário neste ano até se justifica, mas acomoda uma tendência à expansão dos gastos que dificilmente será revertida em 2010, deixando todo o eventual esforço fiscal adicional, em ano eleitoral, do lado da receita, que vem demorando a reagir à melhora da economia. Ao que tudo indica, do Congresso, com o beneplácito do Executivo, virão em breve novas pressões estruturais sobre o gasto, especialmente na área da Previdência.

É à luz desse quadro, ao qual se somam vários investimentos e projetos de investimento que disputam espaços cada vez mais exíguos no orçamento público, que se devem analisar os desafios representados pela realização dos dois maiores eventos esportivos globais no intervalo de apenas dois anos. Alguém supõe que a iniciativa privada será capaz de realizar os investimentos necessários? Existe quem creia que não serão imensas as pressões para que o investimento público não apenas tome a dianteira, mas também cubra toda e qualquer lacuna deixada pelo investimento privado? Pode haver quem pense que devamos nos despreocupar com o risco de que os cofres públicos tenham de derramar montante muito maior do que o inicialmente estimado, por força da urgência dos prazos, do "compromisso" com a imagem internacional do País e do jogo dos muitos e poderosos interesses mobilizados? Devemos acreditar piamente que, por exemplo, todos os investimentos para modernizar e, em alguns casos, ampliar os já superdimensionados estádios brasileiros respondam aos melhores interesses do País?

Outro perigo do triunfalismo é acreditar ser possível promover com igual empenho todos os projetos em tese "estratégicos" para o desenvolvimento: fabricaremos submarino a propulsão nuclear, enriqueceremos urânio para uso próprio e exportação, reequiparemos as Forças Armadas, reergueremos a indústria naval, iremos de São Paulo ao Rio num trem-bala, daremos saltos em vários campos da ciência e da tecnologia, construiremos 1 milhão de moradias, universalizaremos o acesso à banda larga, colocaremos todos os jovens no ensino médio, a cada cerimônia oficial se acrescenta mais um item à lista de objetivos governamentais. Grande parte deles tem mérito. Falta, porém, discussão mais profunda, com a sociedade e no Congresso, sobre as prioridades. Maior ainda é a falta de gestão para transformar objetivos em resultados, donde a distância colossal entre a retórica e os fatos. A esse respeito, nada mais exemplar que o episódio recente do Enem, em que o propósito de ampliar rapidamente seu alcance não encontrou correspondência em cuidados mínimos com a segurança na impressão e estocagem das provas, o que permitiu a uma dupla de mequetrefes roubá-las, escondendo-as debaixo das roupas (as de cima e as de baixo).

Dado que os recursos são finitos, por maiores que sejam as asas da nossa expectativa em relação às ainda longínquas receitas futuras do pré-sal, é preciso discutir a sério o que mais nos interessa (ter submarino a propulsão nuclear ou melhores professores, por exemplo?). Nem sempre as respostas são óbvias e fáceis, mas é preciso enfrentar as perguntas. O triunfalismo nos cega para a importância das próprias perguntas.

O terceiro perigo do triunfalismo é despertar reações negativas de quem tem razões, subjetivas que sejam, para temer o nosso "triunfo". Perde-se com isso capital de confiança e capacidade de influência, de um lado, sem o correspondente acréscimo de poder real, de outro. Isso porque o triunfalismo se caracteriza justamente por nos fazer parecer mais do que na verdade somos e podemos. É nas relações do Brasil com os nossos vizinhos que esse perigo aparece de forma mais clara. Não por acaso, veio de um ex-presidente do Uruguai, Julio María Sanguinetti, em artigo publicado no jornal argentino La Nación, em 2 de outubro, a primeira advertência explícita sobre os riscos do triunfalismo brasileiro. Não nos iludamos: por maior que se tenha tornado a assimetria econômica entre o Brasil e os demais países da América do Sul, as nossas possibilidades de projeção global dependem da nossa capacidade de exercer um papel de moderação política e promoção do desenvolvimento em nossa vizinhança.

Os perigos do triunfalismo não se limitam, porém, ao nosso entorno imediato. Eles podem contaminar tolamente as nossas relações com os países centrais, em especial os Estados Unidos, na sensível área da energia nuclear, na qual, de quando em vez, temos os nossos arroubos de arrependimento por havermos assinado (tardiamente) o Tratado de Não-Proliferação Nuclear.

É hora de pôr a bola no chão. Não para cair na retranca, mas para podermos jogar o nosso melhor jogo. E vencer os muitos desafios que temos pela frente.

18/10 Estadão - Sergio Fausto, coordenador de Estudos e Debates do iFHC, é membro do Grupo de Acompanhamento da Conjuntura Internacional (Gacint) da USPas

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Autoritarismo Eleitoral

Nos últimos anos vários governos latino-americanos eleitos democraticamente têm recorrido a fórmulas antidemocráticas com o objetivo de controlar a arena política e, assim, minimizar a concorrência eleitoral preexistente. Buscam livrar-se de um dos atributos da democracia eleitoral que lhes garantiram o acesso ao poder. É justamente esse impulso regressivo que chama a atenção como uma das características dos experimentos de "governo popular" em curso na Venezuela, na Bolívia, no Equador e na Nicarágua. Insisto: uma das marcas. Pois esse caráter regressivo se combina com o componente popular, inaugurando uma lógica e uma dinâmica política novas, das quais as noções de "populismo" ou "neopopulismo" não dão conta. Ao cientista social cumpre observar o fenômeno novo sem se esquivar da tarefa de nomeá-lo adequadamente, recorrendo a uma inovação conceitual, se necessário. Pode ser útil para refletir sobre as fórmulas de terapia preventiva mais adequadas.

Esses governos governam sob a égide de duas contradições que convém analisar melhor, pois delas derivam sua força e suas fraquezas. A primeira diz respeito à atitude para com a concorrência eleitoral: por um lado, são levados a jogar o jogo de eleições multipartidárias regulares, minimamente competitivas, para continuarem se legitimando - é que o otimismo democrático que varreu a América Latina desde 1980 e o resto do mundo a partir dos anos 90 fixou a preferência popular por eleições como o principal critério de legitimação para acesso ao Poder Executivo e ao Legislativo; por outro, onde há concorrência e, portanto, oportunidade de contestação, eleva-se o teor de incerteza quanto aos resultados das urnas. A contradição incômoda é resolvida pelo controle da arena eleitoral, que pode assumir várias formas: cerceamento dos direitos políticos e das liberdades civis, restrições aos meios de comunicação de massa e de financiamento quando em mãos oposicionistas, regras eleitorais discriminatórias.

Acabo de listar as características típicas de um novo animal: o autoritarismo eleitoral. É uma variedade de regimes cujo traço distintivo é uma profunda ambiguidade institucional. Têm eleições multipartidárias, socialmente inclusivas, porque baseadas no sufrágio universal, e são minimamente pluralistas, pois a oposição tem direito a concorrer e, embora nunca ganhe, obtém votos e cadeiras no Congresso. O autoritarismo eleitoral, em suma, caracteriza-se por fazer de eleições competitivas um instrumento de poder autoritário, não de democracia. A lista cobre países da antiga União Soviética, inclusive a Rússia; do Oriente Médio e do Norte da África, como Egito, Argélia e Tunísia; alguns do Leste e do Sul da Ásia, como Cingapura, Camboja e Malásia; além de vários da África subsaariana.

Os experimentos latino-americanos de autoritarismo eleitoral são uma espécie singular desse gênero porque resultam de uma dinâmica política regressiva - ao contrário dos demais, que em sua grande maioria nunca experimentaram instituições representativas e/ou sistemas de contrapesos entre Poderes. Estes têm matrizes autoritárias e são experimentos de liberalização política embrionários.

Uma segunda contradição, remete ao controle da arena política, graças à instrumentalização da participação popular. Por um lado, o recurso a eleições competitivas implica o reconhecimento institucional de um princípio de cepa liberal: a "vontade do povo soberano". Por outro, implica conceder ao eleitor e às oposições os recursos institucionais - e os valores - que os capacitam a contestar as eleições e o próprio regime. Com isso a coalizão dominante corre riscos de se deslegitimar, vendo-se obrigada a optar entre duas alternativas indigestas: arrochar o controle da arena política ou ceder mais espaço às oposições.

Essa caracterização vale para o gênero, mas a espécie dominante na nossa região se distingue pelo fato de que os governos relevantes têm (ou tiveram) raízes populares. É essa condição que lhes serve de incentivo para erigir a parcela majoritária do eleitorado em "vontade do povo soberano". Daí o impulso revisionista (das Constituições) e a vocação para legitimar-se por meio de plebiscitos. O problema é que, em condições mínimas de concorrência eleitoral e de liberdade de informação, periga que a "vontade do povo soberano" se revele volátil e, além disso, se apresente dividida. Por isso o controle da arena política passa necessariamente pelas restrições à liberdade de imprensa e pela tendência ao monopólio da informação. Deve-se isso a dois conjuntos de problemas, inerentes à democracia de massa e que a liberdade de imprensa contribui para atenuar - a par de instituições que obrigam os governantes a prestar contas. O primeiro é que a operação ideológica pela qual a vontade do eleitorado é convertida em "vontade do povo soberano" passa ao largo do xis da questão: quanto o eleitorado e a opinião pública sabem ou podem saber dos assuntos de interesse público? Mas há um segundo problema que se torna agudo nos países periféricos. Nas democracias de massa há uma enorme defasagem entre a democratização das informações, às quais a população tem acesso via rádio, TV, jornais, internet, e a capacidade que a população tem de elaborar as informações. No curto prazo, é à imprensa que cabe reduzir o espaço dessa defasagem, sempre e quando apresenta e divulga as formas possíveis e alternativas de elaboração da mesma informação por diferentes atores políticos. Nessas circunstâncias exerce um papel pedagógico.

A fórmula complementar para minimizar a defasagem, no longo prazo, é apostar na educação de qualidade.

Lourdes Sola, professora da USP, ex-presidente da Associação Internacional de Ciência Política, é diretora do Global Development Network, da International Institute for Democracy e do Conselho Internacional de Ciências Sociais.

O Estado de S. Paulo - 05/10/2009

domingo, 27 de setembro de 2009

Vergonha de ser brasileiro

O aspecto único do Holocausto, que o diferencia de horrores comparáveis como a escravidão, é que o extermínio do riquíssimo judaísmo europeu, berço de Einsteins, Kafkas e Freuds, foi executado pelo país mais culto da Europa pelo simples fato de os judeus serem judeus.
Eles não eram inimigos do Estado, não tinham exércitos, suas mortes não serviriam (prioritariamente) para o avanço econômico de seus perseguidores. Eram apenas de uma cultura/religião diferente e foram usados pela megalomania germano-hitlerista como a antítese do super-homem ariano, a ser eliminada do tecido alemão.
O sobrevivente do campo de extermínio de Auschwitz e prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel, ao voltar à sua aldeia natal na Romênia, disse que a vida por lá continuava exatamente igual desde que deixara o lugar com a família, 40 anos antes, rumo à morte. A única diferença é que não havia mais judeus.
Quase 9 milhões de judeus viviam nos países europeus direta ou indiretamente sob controle alemão. Os nazistas conseguiram matar cerca de 6 milhões. Se os judeus não lembrarem seu Holocausto, ele certamente será esquecido.
Por isso embrulha o estômago ver o presidente Lula abraçar o presidente Mahmoud Ahmadinejad em Nova York poucos dias depois de o iraniano declarar que "o Holocausto é uma mentira".
O insulto de Ahmadinejad foi ainda mais doloroso por ocorrer às vésperas do Rosh Ashaná, o Ano Novo judaico, período de reflexão. Os grandes países ocidentais o deploraram.
O Brasil se calou.
E logo depois ainda prestigiou o semi-pária num encontro de mais de uma hora na ONU, durante a Assembleia Geral da organização, para o mundo todo ver.
Lula e o Brasil estão no auge de sua projeção de poder. Estamos mudando de liga no jogo das nações. E nossa Chancelaria vende barato nosso cada vez mais importante apoio. O que o Irã dá em troca ao Brasil?
Antes de receber Ahmadinejad na cidade com a maior população judaica do mundo, Lula já havia sido o primeiro a apoiá-lo logo após a contestada eleição do iraniano. E ainda fez uma muito infeliz comparação dos conflitos entre oposicionistas e milícias armadas iranianas a uma rixa entre vascaínos e flamenguistas.
Tal rixa deixou dezenas de mortos e enfraqueceu um regime teocrático entre os mais repressores do mundo. Mas o Brasil de Lula foi o primeiro a estender sua mão para fortalecer o regime repressor de Teerã. E ainda receberá Ahmadinejad em visita em novembro.
O presidente brasileiro, genuinamente humanista, parece ter sido enrolado pelo anacrônico terceiro-mundismo que domina seus assessores e o Itamaraty. Ao ser questionado em Nova York sobre o negacionismo hediondo de Ahmadinejad em relação ao Holocausto, Lula respondeu:
"Isso não prejudica a relação do Estado brasileiro com o Irã porque isso não é um clube de amigos. Isso é uma relação do Estado brasileiro com o Estado iraniano."
A frase faria sentido se essa relação trouxesse benefícios ao Estado brasileiro proporcionais aos gestos de Lula. Mas ela só engrossa a lista de equívocos de sua diplomacia.
Já seria duro ver o Brasil tolerar a intolerância por recompensas mundanas. Tolerá-la por nada dá vergonha.

Sérgio Malbergier, é editor de Dinheiro da Folha. Foi editor de Mundo, correspondente em Londres e enviado especial a países como Iraque, Israel e Venezuela. Formado em cinema, pela ECA-USP, dirigiu dois curta-metragens: "A Árvore" e "Carô no Inferno

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Celebrando Bobbio no seu centenário

O próximo mês de outubro assinala o centenário de nascimento de Norberto Bobbio, o grande pensador italiano falecido em 2004, cuja obra há muito tempo vem sendo discutida e apreciada em seu país e em tantos quadrantes culturais do mundo. No Brasil, que visitou em 1983 e onde deu conferências e participou de debates na Universidade de Brasília e na Faculdade de Direito da USP, ele se tornou uma referência, não só para um diversificado espectro do campo político brasileiro que vai da esquerda ao centro liberal, como também para os estudiosos das áreas do conhecimento a que se dedicou ao longo de uma vida voltada para o ensino e a pesquisa.

O rigor e a profundidade dos conhecimentos, o espírito público, a inteireza do caráter, a altiva independência, o empenho no diálogo, o combate ao arbítrio e aos fanatismos, a dedicação à preservação da liberdade e a permanente preocupação com a igualdade são características do percurso de Norberto Bobbio e do seu “socialismo liberal”. Foram, no correr da sua vida, explicitadas e articuladas como professor e intelectual que militou no espaço público da palavra e da ação e são componentes substantivos do seu magistério.

O que singulariza o magistério de Bobbio é a clareza. San Tiago Dantas observou que “a tarefa da inteligência humana é tirar o valor das coisas da obscuridade para a luz”. A essa tarefa da inteligência humana Bobbio se dedicou com resultados exemplares. Por isso, foi considerado o grande clarificador dos problemas e desafios da teoria jurídica e da teoria política, da paz e da guerra, da tutela dos direitos humanos, da relação entre os intelectuais e o poder, das especificidades da cultura italiana e europeia e de seus autores clássicos, para mencionar grandes e significativos blocos da sua notável obra - da qual grande parte dos títulos mais conhecidos está disponível em edições brasileiras. Bobbio esclarece os seus leitores graças às virtudes do seu estilo de pensamento - e estilo, como a cor para o pintor, é uma qualidade da visão, como dizia Proust.

O estilo de Bobbio é de índole analítica. Analisar significa dividir, distinguir, decompor, que é o que ele faz no trato dos conceitos. Nas suas análises opera com uma multiplicidade de dicotomias voltadas para apontar diferenças e semelhanças e, dessa maneira, lidar com uma realidade complexa e desordenada. Levando em conta a “lição dos clássicos” e os seus temas recorrentes, reaglutina os conceitos, numa arte combinatória de grande originalidade, na qual a linguagem ilumina o entendimento dos contextos e das situações. É isso que faz dele um raro caso de pensador analítico com agudo senso da História. Daí a qualidade e pertinência dos seus juízos.

O ponto de partida de Bobbio, como diz em Política e Cultura, é o da “inquietação da pesquisa, o aguilhão da dúvida, a vontade do diálogo, o espírito crítico, a medida no julgar, o escrúpulo filológico, o senso de complexidade das coisas”. O pano de fundo da sua obra, como a de Isaiah Berlin, Raymond Aron, Hannah Arendt - o centenário destes também celebrei nesta página -, é uma resposta às rupturas e descontinuidades do século 20, cujas vicissitudes enfrentaram com a sensibilidade comum que, independentemente das posições, caracteriza uma geração, como salienta Ortega y Gasset.

Bobbio viveu os seus anos de formação no período fascista, regime político que é parte integrante da dinâmica da “era dos extremos”, que historicamente moldou o século 20. O fascismo, como ele observou, “trazia a violência no corpo. A violência era a sua ideologia”. Caracterizou-se pela exaltação da guerra e a estatolatria e o seu ímpeto motivador foi o combate à democracia.

A obra de Bobbio, em função da sua vivência e da sua oposição ao fascismo, a isso se contrapôs. Por isso, como observa Pier Paolo Portinaro, tem como um dos seus elementos constitutivos a contestação à fúria dos extremos, voltada para a destruição da razão, que caracterizou o contexto político italiano e europeu, com irradiação mundial antes, mas também depois da 2ª Guerra Mundial. É, assim, um percurso intelectual muito voltado para a pesquisa e a análise de alternativas medularmente distintas daquelas que o fascismo, como regime de vocação totalitária, emblematizou, em especial a destruição da democracia e a glorificação do belicismo e do papel salvador do “Duce”.

É nessa moldura que se configuraram temas recorrentes e interligados da reflexão de Bobbio. Entre eles, o da domesticação do poder pelo Estado de Direito, a defesa da perspectiva dos governados pela abrangente tutela das várias gerações de direitos humanos, a razão de ser da democracia e das suas regras, que “conta cabeças e não corta cabeças”. É nesse contexto, voltado para eliminar ou limitar, da melhor maneira possível, a violência como meio para resolver conflitos, que se insere a sua análise das relações internacionais e o seu empenho em prol da paz, direcionado para conter o caso mais clamoroso da violência coletiva, que é a guerra entre os Estados que, na era nuclear, tem o potencial de destruição da própria humanidade.

A violência, que se caracteriza pela desproporção entre meios e objetivos e pela falta de medida, destrói, exaure e não cria. Permeia este século 21, que continua carregando no seu bojo a herança da “era dos extremos” que moldou o século passado. A atualidade e a autoridade do legado de Bobbio residem na lúcida busca que, com o realismo de um olhar hobbesiano e a dimensão ética de um coração kantiano, empreende de caminhos jurídicos e políticos alternativos à violência no labirinto da convivência coletiva. Tem como lastro a conjetura de que o único possível e plausível salto qualitativo na História é o da passagem do reino da violência para o da não-violência.

Celso Lafer, O Estado de S. Paulo, 20/09/09


Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC

domingo, 20 de setembro de 2009

Coisas vistas, solas gastas

Há na vida dos mandatários de índole populista um momento em que a autoelevação, o sentimento de onipotência, os deixa muito próximos da Providência Divina. Imbuem-se da missão determinada pelo Senhor para conduzir o povo à terra prometida. Apreciados e bem avaliados pelas comunidades, com prestígio maior que antecessores, consideram-se imbatíveis, incomparáveis e infalíveis. Sua expressão é a extensão da verdade, sua crença remove qualquer montanha de dúvidas que, por acaso, se contraponha ao voluntarismo que os impregna. Governam plasmando a realidade com metáforas e lapidando a mitomania com a pintura de palanque. Igualam-se às divindades, atribuem-se poderes extraordinários e, como Prometeu, tentam passar a impressão de que só eles são capazes de conhecer os segredos do Olimpo. Se a descrição parece exagerada, até porque não se vive mais (ou ainda se vive?) o ciclo dos Estados absolutistas, não se pode descartar por completo a hipótese. É evidente que governantes modernos procuram se amparar numa base mínima de racionalidade, mas, em certos territórios, a barbárie ainda deixa laivos de rusticidade. Ritos ditatoriais ou de talhe fundamentalista marcam presença. No Oriente Médio a estampa é conhecida. Mesmo em governos que se proclamam democráticos a deificação de perfis tem sido prática recorrente. O "timoneiro" e vizinho Hugo Chávez corre mundo como a reencarnação de Simón Bolívar.

Se o leitor imaginava que o "nariz de cera" acima foi feito para adornar a fisionomia do nosso presidente, acertou em cheio. Não se trata de dizer que Lula usa por inteiro o manto sagrado. Só uma parte. Aquela que lhe convém. O ex-metalúrgico é um exemplo acabado da dinâmica social brasileira. Saiu da base profunda para o vértice da pirâmide. Entre as primeiras falas, quando cometia um "menas" verdade, e esta dourada fase em que se dá ao luxo de corrigir a expressão de ministros - acaba de corrigir o "interviu" do ministro Tarso Genro por "interveio" - deu um salto extraordinário. O refinamento do modo Lula de ser deu-lhe o direito de se sentar ao lado de Zeus, senhor do Olimpo, onde impera sob a graça da onipotência. Suas perorações são cada vez mais alinhavadas de lições virtuosas que só um espírito deificado é capaz de fazer. Querem um exemplo? O motivo que ele apresenta para adquirir dos franceses 36 caças Rafale, 5 submarinos e 50 helicópteros: defender as riquezas do pré-sal. Piratas da Somália, que raptam navios cargueiros nas costas da África, constituem séria ameaça às nossas reservas? Ou haverá ameaças mais iminentes? Há. O presidente assim enxerga: "Os homens já estão aí com a 4ª Frota quase em cima do pré-sal." Sob essa visão apocalíptica, justifica-se a compra dos aviões franceses e, se alguém questiona o preço mais alto dos caças em comparação com os americanos, retruca: "Daqui a pouco eu vou receber de graça." Ou seja, não é o Brasil que vai receber, mas é ele, o Rei-Sol, o nosso Luiz XIV, o destinatário das aeronaves. "L"État c"est moi."

Apontar a 4ª Frota como ameaça parece piada. Mas saindo da boca de Luiz Inácio a expressão ganha foro de verdade. Afinal, quem é dono da flauta dá o tom. Lembrando: essa frota foi desativada há 50 anos, tendo sido restabelecida em junho último com o propósito de combater o comércio de drogas, apoiar navios em situações de desastre e ajudar em missões de paz na América Latina e no Caribe. Mas os governantes da região a distinguem como ameaça à soberania de seus países. Imaginar que os Estados Unidos, que ainda portam o título de nação mais desenvolvida do mundo, possam vir a sequestrar petróleo de amigos é querer fazer pânico em festa noturna de sexta-feira 13. Pode ser que Lula, com a lupa de futurólogo, veja o cenário entre 1920 e 1925 e se depare com a 4ª Guerra Mundial, com os americanos liderando um bloco de países vorazes e dispostos a sequestrar o óleo de fontes produtoras. Mas o que dizer quando a previsão é de que o ouro negro do pré-sal só vai aparecer daqui a 10 ou 15 anos? E se nessa época o preço do petróleo, diante do boom do etanol, não compensar a manutenção de altos investimentos?

Por essa e por outras, Luiz Inácio começa a sentir os primeiros balanços da torre que o sustenta. Assumiu a defesa de José Sarney com um discurso anacrônico; aflige-se com as obras empacadas do PAC; de braços cruzados, contempla a expansão da insegurança e a deterioração do sistema de saúde. Esse rescaldo da fogueira explica a queda de 4,7 pontos na avaliação presidencial, segundo a última pesquisa Sensus. Para resgatar os altos índices de aprovação Sua Excelência tentará transformar o pré-sal no hino de elevação da autoestima a ser cantado no altar de um nacionalismo revigorado. A intenção? Atrair o rebanho que lhe é fiel para o curral de sua pré-candidata, a ministra Dilma Rousseff, cuja pontuação entrou em queda. O ciclo de vida do sermão de Cristo na montanha dura até hoje. Até quando o sermão de Lula no palanque atrairá as massas? Como Lula se acha parente do Mestre Divino, deve acreditar que seu verbo brilhará nos horizontes dos tempos.

Para tanto fez a escolha: a ética de resultados, em vez da ética de princípios. Por essa via caminhará com disposição e verve - e haja verve - para imprimir na consciência social o traço narcisista que recorta a face da administração: Lula aqui, ali e acolá, ele e sua sombra, ele e o espelho. Campanhas publicitárias, blog, discursos repetitivos, eventos em série, lobo e cordeiro andando juntos (ele é o cordeiro), tudo regrado pelo jogo dialético: "Este país pisava na miséria, hoje navega no progresso." Querem saber o que pode tirar Lula do Olimpo? O narcisismo. A parafernália comunicacional, regada de tecnologia, planejada para animar e monitorar o consciente e o inconsciente da população, redundará no efeito "copo transbordante", aquela conhecida sensação de coisa já vista e revista, ante a qual as pessoas tendem a reagir negativamente. Zaratustra, o profeta, diria: "Cansei-me das velhas línguas. Não quer mais o meu espírito caminhar com solas gastas."

Gaudêncio Torquato
O Estado de S. Paulo - 13/09/2009

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Por que a impunidade é tão frequente no Brasil

É comum associar a corrupção na esfera pública e a impunidade a regimes autoritários, sem eleições. Mas e o Brasil?

É COMUM associar a corrupção na esfera pública e a impunidade a regimes autoritários, sem eleições ou com eleições fraudadas, sem Parlamento ou com Parlamentos fictícios, onde não exista liberdade de expressão, com imprensa censurada e o Judiciário submisso ao Executivo. E onde as leis só valham enquanto for do interesse dos poderosos.

A explicação para a coexistência de corrupção, impunidade e regimes autoritários é que não existem freios ou contrapesos para controlar os abusos dos governantes, que, assim, exercem um poder absoluto. Já se afirmou que o poder corrompe, mas o poder absoluto corrompe absolutamente.

O remédio utilizado para combater a corrupção foi a democracia e a liberdade. Em regimes democráticos, o poder político é controlado por leis e instituições e, mais importante, sujeito a cobranças populares. Com isso, o espaço para malversação do patrimônio público foi reduzido e culpados puderam ser punidos, Mas e o Brasil? A Constituição, em seu artigo 1º, dispõe que o Brasil é um Estado democrático de Direito e, a seguir, arrola os direitos e as garantias individuais, coletivas e sociais.

Ora, esses preceitos têm sido observados. Realizamos eleições livres e periódicas, existe independência do Poder Judiciário, liberdade de imprensa, de opinião e de organização política. Com as limitações impostas pelas mazelas da natureza humana, é certo que no Brasil existe liberdade e democracia.

No entanto, frustrando a esperança de tantos que lutamos pela redemocratização, a percepção de corrupção e a sensação de impunidade no setor público perduram, se é que não aumentaram. O que deu errado?

O parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal determina: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".

Formalmente, esse comando é observado. A população que elege seus representantes. Em relação ao Executivo, não apenas formalmente mas também efetivamente, a sensação popular é a de que é o povo que escolhe o presidente, governador ou prefeito. Assim como escolhe, o eleitor acompanha, cobra e pune ou recompensa por meio do voto.

Levando em conta as inevitáveis imperfeições de processos sociais de massa e o estágio de desenvolvimento do Brasil, acredito que, para o Poder Executivo, o referido parágrafo único de fato reflete nossa realidade. Esperamos que a continuidade da prática eleitoral aperfeiçoe o processo de escolha dos governantes.

Entretanto, no caso do Legislativo a realidade é bem diferente. Via de regra não existe, para a maioria da população, a sensação de que o Parlamentar federal, estadual ou mesmo o municipal seja seu representante político, ou seja, aquele que exerce o poder em seu nome e deveria ter sua atividade acompanhada e ser cobrado, punido ou recompensado pelo voto.

A maioria dos eleitores nem se lembra em quem votou. A relação de representação política é quase inexistente. O que vigora é uma relação clientelista entre o eleitor e o candidato. O parlamentar é visto como se fosse um despachante que resolve problemas e atende a reivindicações particulares, nem sempre legítimas.

É nessa perspectiva que devem ser entendidas manifestações de parlamentares que afirmaram não se importar com a opinião pública. Eles acreditam que não serão julgados por seus eleitores pelas atitudes éticas ou políticas, mas por sua capacidade de atender às demandas particulares ou locais, como vaga em creche, apoio ao clube de futebol, emprego público, estradas vicinais, postos de saúde etc.

Enquanto essa realidade perdurar, será muito difícil reduzir a impunidade que grassa no Brasil. Para mudar, são necessárias alterações no sistema de votação das eleições proporcionais que estimulem uma relação de representatividade política entre o eleitor e o eleito, como a adoção do voto distrital, pois esse mecanismo promove uma aproximação do candidato com a população.
Mas não devemos ficar parados esperando que os políticos resolvam o problema. Essas mudanças podem ser apressadas com a conscientização de cada cidadão de sua responsabilidade ética e política. A culpa não é só dos políticos. Rogério Ceni tem razão.

É tarefa de todos nós.

ANDRÉ FRANCO MONTORO FILHO - Folha de São Paulo


ANDRÉ FRANCO MONTORO FILHO , 65, doutor em economia pela Universidade Yale (EUA), é professor titular da FEA-USP e presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial-ETCO. Foi secretário de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo (governo Mário Covas) e presidente do BNDES (1985 a 1988).

domingo, 13 de setembro de 2009

"ALGO HICIMOS MAL"

DEPOIMENTO DO PRESIDENTE DA COSTA RICA

Palavras do Presidente Oscar Arias da Costa Rica na Cúpula das Américas em Trinidad e Tobago, 18 de abril de 2009

"ALGO HICIMOS MAL"

"Tenho a impressão de que cada vez que os países caribenhos e latino-americanos se reúnem com o presidente dos Estados Unidos da América, é para pedir-lhe coisas ou para reclamar coisas. Quase sempre, é para culpar os Estados Unidos de nossos males passados, presentes e futuros. Não creio que isso seja de todo justo.
Não podemos esquecer que a América Latina teve universidades antes que os Estados Unidos criassem Harvard e William & Mary, que são as primeiras universidades desse país.
Não podemos esquecer que nesse continente, como no mundo inteiro, pelo menos até 1750todos os americanos eram mais ou menos iguais: todos eram pobres.
Ao aparecer a Revolução Industrial na Inglaterra, outros países sobem nesse vagão: Alemanha, França, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e aqui a Revolução Industrial passou pela América Latina como um cometa, e não nos demos conta.
Certamente perdemos a oportunidade.
Há também uma diferença muito grande. Lendo a história da América Latina, comparada com a história dos Estados Unidos, compreende-se que a América Latina não teve um John Winthrop espanhol, nem português, que viesse com a Bíblia em sua mão disposto a construir uma Cidade sobre uma Colina, uma cidade que brilhasse, como foi a pretensão dos peregrinos que chegaram aos Estados Unidos.
Faz 50 anos, o México era mais rico que Portugal. Em 1950, um país como o Brasil tinha uma renda per capita mais elevada que o da Coréia do Sul. Faz 60 anos, Honduras tinha mais riqueza per capita que Cingapura, e hoje Cingapura em questão de 35 a 40 anos é um país com $40.000 de renda anual por habitante. Bem, algo nós fizemos mal, os latino-americanos.
Que fizemos errado? Nem posso enumerar todas as coisas que fizemos mal. Para começar, temos uma escolaridade de 7 anos.
Essa é a escolaridade média da América Latina e não é o caso da maioria dos países asiáticos. Certamente não é o caso de países como Estados Unidos e Canadá, com a melhor educação do mundo, similar a dos europeus. De cada 10 estudantes que ingressam no nível secundário na América Latina, em alguns países, só um termina esse nível secundário.
Há países que têm uma mortalidade infantil de 50 crianças por cada mil, quando a média nos países asiáticos mais avançados é de 8, 9 ou 10.
Nós temos países onde a carga tributária é de 12% do produto interno bruto e não é responsabilidade de ninguém, exceto nossa, que não cobremos dinheiro das pessoas mais ricas dos nossos países. Ninguém tem a culpa disso, a não ser nós mesmos.
Em 1950, cada cidadão norte-americano era quatro vezes mais rico que um cidadão latino-americano. Hoje em dia, um cidadão norte-americano é 10, 15 ou 20 vezes mais rico que um latino-americano. Isso não é culpa dos Estados Unidos, é culpa nossa.
No meu pronunciamento me referi a um fato que para mim é grotesco e que somente demonstra que o sistema de valores do século XX, que parece ser o que estamos pondo em prática também no século XXI, é um sistema de valores equivocado.
Porque não pode ser que o mundo rico dedique 100.000 milhões de dólares para aliviar a pobreza dos 80% da população do mundo "num planeta que tem 2.500 milhões de seres humanos com uma renda de $2 por dia" e que gaste 13 vezes mais ($1.300.000.000.000) em armas e soldados.
Como disse esta manhã, não pode ser que a América Latina gaste $50.000* milhões em armas e soldados.
Eu me pergunto: quem é o nosso inimigo?
Nosso inimigo, presidente Correa, desta desigualdade que o Sr. aponta com muita razão, é a falta de educação; é o analfabetismo;
é que não gastamos na saúde de nosso povo; que não criamos a infra-estruturar necessária, as estradas, os portos, os aeroportos; que não estamos dedicando os recursos necessários para deter a degradação do meio ambiente; é a desigualdade que temos que nos envergonhar realmente; é produto, entre muitas outras coisas, de que não estamos educando nossos filhos e nossas filhas.
Vá alguém a uma universidade latino-americana e parece no entanto que estamos nos sessenta, setenta ou oitenta.
Parece que nos esquecemos de que em 9 de novembro de 1989 aconteceu algo de muito importante, ao cair o Muro de Berlim, e que o mundo mudou. Temos que aceitar que este é um mundo diferente, e nisso francamente penso que os acadêmicos, que toda gente pensante, que todos os economistas, que todos os historiadores, quase concordam que o século XXI é um século dos asiáticos não dos latino-americanos.
E eu, lamentavelmente, concordo com eles. Porque enquanto nós continuamos discutindo sobre ideologias, continuamos discutindo sobre todos os "ismos" (qual é o melhor? capitalismo, socialismo, comunismo, liberalismo, neoliberalismo, socialcristianismo...) os asiáticos encontraram um "ismo" muito realista para o século XXI e o final do século XX, que é o pragmatismo.
Para só citar um exemplo, recordemos que quando Deng Xiaoping visitou Cingapura e a Coréia do Sul, depois de ter-se dado conta de que seus próprios vizinhos estavam enriquecendo de uma maneira muito acelerada, regressou a Pequim e disse aos velhos camaradas maoístas que o haviam acompanhado na Grande Marcha: "Bem, a verdade, queridos camaradas, é que a mim não importa se o gato é branco ou negro, só o que me interessa é que cace ratos".
E se Mao estivesse vivo, teria morrido de novo quando disse que "a verdade é que enriquecer é glorioso".
E enquanto os chineses fazem isso, e desde 1979 até hoje crescem a 11%, 12% ou 13%, e tiraram 300 milhões de habitantes da pobreza, nós continuamos discutindo sobre ideologias que devíamos ter enterrado há muito tempo atrás.
A boa notícia é que isto Deng Xiaoping o conseguiu quando tinha 74 anos.
Olhando em volta, queridos presidentes, não vejo ninguém que esteja perto dos 74 anos.
Por isso só lhes peço que não esperemos completá-los para fazer as mudanças que temos que fazer. Muchas gracias."

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Práxis de hoje e de antigamente

O homem na história sempre procurou compreender e interpretar sua própria narrativa, o conjunto das suas ações como ser social. Tal processo de compreensão, de conscientização da importância da interação humana, é entendido como práxis.

De acordo com Marx, práxis é o agir consciente, no qual o homem, diferente de qualquer outro animal, realiza suas ações traçando um objetivo e buscando um resultado para, desta forma, auxiliar no processo de construção da história coletiva.

Entretanto, enquanto o homem de antigamente lidava com necessidades básicas e sua relação social baseava-se mais na busca da liberdade e a liberdade de todos; a modernidade impôs um consumismo brutal e fez com que o homem passasse a pensar mais em si mesmo, suas necessidades crescentes, desconsiderando o bem comum.

Também na sociedade moderna, infelizmente, com o predomínio do poder em mãos das classes mais organizadas, as regras deixam de abranger o todo, o bem comum, e acabam sendo criadas para preservar grupos sociais, e o benefício de ações sociais continua restrito a poucos, num perverso círculo vicioso. Neste processo, parte da população já não consegue nem mesmo suprir suas necessidades mais essenciais.

No Brasil, ainda há fatores históricos mais complicadores. Além de causas universais, as políticas sociais e econômicas do país visavam, já no início de nossa colonização, à exploração de recursos para envio ao exterior e não se concentravam em melhorar as condições de vida do brasileiro. Como resultado, o Brasil, país de riquezas potenciais imensas, apresenta índices de desigualdade absolutamente assustadores.

É nesta encruzilhada que nos encontramos atualmente no nosso país. Podemos até mesmo ter melhorado nossos números econômicos, podemos ter alcançado o alardeado status de ‘emergente’ e, não me entendam mal, há grande mérito neste progresso. Entretanto, a realidade de nossas ruas, o abismo social e econômico flagrante de nossa população e a desigualdade de renda exigem que enfoquemos o problema da pobreza e da desigualdade de modo mais concreto. Devemos buscar eliminar as causas estruturais da pobreza, o que implica na tomada de ações políticas para eliminar os vícios de auto-preservação.

Portanto, devemos nos conscientizar do nosso dever em criar instrumentos democráticos, mas torná-los acessíveis à população como um todo, para que possamos, enfim, cuidar das necessidades do povo, para que possamos finalmente escrever um novo capítulo social no Brasil.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Receita Federal

Eis que o PT engoliu o lulismo, que se esqueceu de ser PT. O Partido do presidente, no seu afã de politizar órgãos que não podem prescindir de funcionários e técnicos independentes e especializados, loteou a Receita Federal de “companheiros” e sindicalistas. Assim, o PT do presidente começou a esquecer suas origens e resolveu privilegiar grandes interesses, eleger o caminho da demagogia e da proteção de seus feudos, começou a pressionar seus próprios membros para “aliviar”, “agilizar” pessoas e empresas.

E o PT sindicalista se revoltou contra o Partido do Lula. Um virtual
expurgo virou uma rebelião, e a Receita Federal entrou numa crise
sem precedentes.

EDITORIAL DA FOLHA

domingo, 16 de agosto de 2009

Corrupção - Celso Lafer

A palavra corrupção vem do latim, do verbo corrumpere. O significado originário da palavra é o de estragar, decompor. Na filosofia aristotélica é uma das espécies de movimento que levam à destruição da substância. Políbio, tratando dos modos pelos quais os regimes políticos mudam e, por isso, alteram a sua substância por obra do movimento da corrupção, recorre a uma metáfora esclarecedora. Indica que a corrupção, nos regimes políticos, exerce papel semelhante ao da ferrugem em relação ao ferro ou ao dos cupins em relação à madeira: é um agente de decomposição da substância das instituições públicas.

Valendo-se da "lição dos clássicos", Michelangelo Bovero, ao pensar problemas da política contemporânea, aponta os riscos do movimento da corrupção. Um dos mais significativos é o de favorecer uma kakistocracia, literalmente o governo dos piores, que abre espaço tanto para a demagogia do pão e circo quanto para a plutocracia, na qual prevalece a influência do dinheiro na gestão governamental.

Faço essas rápidas remissões à teoria política com o objetivo de realçar que o tema da corrupção vai além da transgressiva conduta individual de pessoas em esferas e rincões da vida nacional. Transcende, igualmente, a dimensão técnica do elenco de crimes contra a administração pública, tipificados na legislação penal e voltados para apenar as múltiplas formas de ilícitos de que se reveste a corrupção (peculato, concussão, prevaricação, tráfico de influência, etc.). É um sério problema de profundo alcance político. Enseja o que Raymond Aron chama de corrupção do espírito público.

A corrupção do espírito público mina a confiança das pessoas nas instituições democráticas, que nelas não vislumbram uma postura efetivamente voltada para o interesse comum. Com efeito, a corrupção é o cupim que está decompondo as aspirações republicanas consagradas na Constituição de 1988, pois a res publica - o bem comum - está sendo confundida, e não diferenciada, como na formulação de Cícero, do bem privado (res privata), do bem doméstico (res domestica) e do bem familiar (res famialiaris).

Realço o que isso significa nos dias de hoje, pois o declínio de políticas ideológicas e a complexidade dos assuntos que são da responsabilidade de um governo fazem da credibilidade um elemento fundamental da governança. A corrupção é um redutor da confiança na classe política, nas instituições e nos partidos, que tem, assim, consequências para o bom funcionamento do sistema político, pois cupiniza o seu capital simbólico.

Gianfranco Pasquino caracteriza a corrupção política como a prática de comportamentos incompatíveis com as normas que, em consonância com os valores maiores da sociedade, regulam o exercício legítimo do poder na esfera pública. Uma medida da corrupção política é a dada por todas aquelas ações ou omissões dos detentores do poder político que violam normas jurídicas gerais para perseguir interesses e vantagens particulares. Lembro que uma das virtudes do Estado Democrático de Direito é o respeito às leis e, muito especialmente, à Constituição, e uma dimensão da falta de virtude é a complacência no afrouxamento da sua força obrigatória.

Na Constituição de 1988 o artigo 37 é um paradigma de normas jurídicas gerais que regulam o exercício legítimo do poder na esfera pública. Estabelece os princípios a que a administração pública deve obedecer. Destaco o da legalidade, o da impessoalidade, o da moralidade e o da publicidade como os mais pertinentes no trato da corrupção, pois assentam os padrões de conduta que dão a vis directiva do interesse público.

O princípio da legalidade afirma que a atividade administrativa se rege pelo atendimento das normas jurídicas com base na lei, cuja finalidade é sempre a presunção do interesse público. O princípio, que fundamenta o Estado Democrático de Direito, está voltado para embargar os ilícitos da corrupção provenientes dos desmandos e favoritismos no exercício do poder.

O princípio da impessoalidade assevera que a administração pública deve tratar a todos sem distinções, em obediência ao republicano princípio da igualdade. O clientelismo das nomeações, o compadrio, o favorecimento da família, em síntese, as modalidades de corrupção provenientes da confusão entre o público e o privado, entre a Casa e a Rua - para lembrar a formulação de Roberto DaMatta - são alvos desse princípio.

O princípio da moralidade aponta para o fato de que o direito, como a disciplina da convivência humana, sempre tem como piso um mínimo ético. O princípio é a cobertura axiológica da boa-fé e da confiança que deve cercar, na relação governantes-governados, a aquisição e o exercício do poder. Por isso adensa o conteúdo jurídico das normas, cuja inobservância configura a improbidade administrativa como modalidade de corrupção que propicia a associação ilícita entre o dinheiro e o poder.

O princípio da publicidade parte de um pressuposto essencial da democracia: o público, por ser o comum a todos, deve ser do conhecimento de todos, e não ser guardado em sigilo nas arcas do Estado. A transparência propiciada pela publicidade e fortalecida pela liberdade de expressão dá aos governados condição de controle da ação dos governantes. No plano ético, está voltado para embargar as modalidades da corrupção que se escondem no criptogoverno de atividades e atos secretos, que não passam pelo teste da moralidade oferecida pelo sol da publicidade. Como dizia Machado de Assis, "corrupção escondida vale tanto como pública; a diferença é que não fede".

Neste momento, no Brasil, para a cidadania, o cheiro está insuportável.

Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Políticos de uma nova geração

Ética, Política e um Pacto

O que presenciamos nestes dias nas ações dos políticos atuantes em nosso cenário nacional vai contra qualquer princípio e ética, preceitos imperativos para qualquer um que decida enveredar-se pela política. A política per se é uma das mais nobres profissões, porque implica em responsabilidades ímpares. O exercício da política requer ações e decisões estratégicas, que impactarão na vida de uma nação, no bem-estar de seu povo.

Infelizmente, a história – especificamente nossa história recente –abunda com modelos de políticos que esqueceram seus princípios e que, para manter o poder pelo poder, ou para auferir benesses financeiras, esqueceram-se das premissas básicas de suas funções.

Max Weber, sociólogo do início do século XX, declara que política exige pessoas que desenvolvam a capacidade de ponderar, de manter equilíbrio entre paixão e perspectiva, entre o desejável e o possível. Mas também relata que o político pode abrir mão de algumas aspirações, se assim o momento exigir, mas que, chegando a certo limite, colocará seus princípios como a fronteira final: “Não posso fazer de outro modo; detenho-me aqui.”

O que temos presenciado vai além do maquiavelismo, doutrina que fundamenta uma conduta política baseada no princípio de que o fim desejado justifica o uso de quaisquer meios, por piores que sejam. O próprio fim já está deturpado: muitos dos nossos políticos mais tradicionais escolheram como causa final o ganho pessoal ou partidário, representado pela perpetuação do poder ou pelo favorecimento econômico.

Weber define o político por vocação e ressalta três qualidades
imprescindíveis: a paixão, a responsabilidade e o senso de proporção. A paixão requer a dedicação irrestrita a uma causa: o bem estar do povo. Entretanto, só paixão não faz o bom político, se a paixão enquanto devoção a uma causa também implique em fazer da responsabilidade para com tal causa a estrela guia de suas ações. Para tanto, um senso de proporção é fundamental. O senso de proporção é a qualidade psicológica decisiva do político porque requer a capacidade de distanciamento das coisas e dos homens. Significa a “capacidade de deixar que as realidades atuem sobre ele com uma concentração e uma calma íntimas.” Sendo assim, o político que se preze deve ininterruptamente superar internamente um adversário trivial e por demais humano: a vaidade.

Creio que nosso país anda exigindo isso de nós, que escolhemos e
sentimos a vocação da política: que deixemos de lado vaidades,
fisiologismos, clientelismos, ganância, corporativismo, busca do
poder pelo poder.

Cabe a nós, políticos de uma nova geração, restabelecer princípios e ética que, admito, não são prerrogativas apenas nossas, mas que
parecem ter sido esquecidas por grande parte desta geração. A verdade é que há uma nova gênese no meio político nacional: pessoas que amam este país e este povo e que entendem que fazer política é uma profissão que pode ser desempenhada com lisura, com conhecimento social, com altruísmo. Esta nova classe política é filha da indignação para com os modelos arcaicos. São
pessoas que adentram a política pensando no bem maior.

Nós, que cansamos da velhacaria, devemos então fazer um pacto para defender nossas causas sociais com paixão, mas com responsabilidade, discernimento, dedicação e com o cuidado reverencial de quem é responsável pelo bem público. Nós, que nos dispomos a abraçar este nobre caminho, devemos fazer um pacto de sempre lembrar o que e quem nos fez chegar até aqui, transformando-nos em defensores das causas deste povo.

domingo, 9 de agosto de 2009

Amigos

Amigos são presentes de Deus

Amigos que não sabem o quanto são meus amigos.
Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta
necessidade que tenho deles.
A amizade é um sentimento mais nobre do que o amor,
eis que permite que o objeto dela se divida em outros afetos, enquanto o
amor tem intrínseco o ciúme, que não admite a rivalidade.
E eu poderia suportar, embora não sem dor, que
tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem
todos os meus amigos!
Até mesmo aqueles que não percebem o quanto são meus
amigos e o quanto minha vida depende de suas existências …
A alguns deles não procuro, basta-me saber que eles existem.
Esta mera condição me encoraja a seguir em frente pela vida.
Mas, porque não os procuro com assiduidade, não
posso lhes dizer o quanto gosto deles. Eles não iriam acreditar.
Muitos deles estão lendo esta crônica e não sabem
que estão incluídos na sagrada relação de meus amigos.
Mas é delicioso que eu saiba e sinta que os adoro,
embora não declare e não os procure.
E às vezes, quando os procuro, noto que eles não tem
noção de como me são necessários, de como são indispensáveis ao meu
equilíbrio vital, porque eles fazem parte do mundo que eu, tremulamente,
construí e se tornaram alicerces do meu encanto pela vida.
Se um deles morrer, eu ficarei torto para um lado.
Se todos eles morrerem, eu desabo!
Por isso é que, sem que eles saibam, eu rezo pela vida deles.
E me envergonho, porque essa minha prece é, em
síntese, dirigida ao meu bem estar. Ela é, talvez, fruto do meu egoísmo.
Por vezes, mergulho em pensamentos sobre alguns deles.
Quando viajo e fico diante de lugares maravilhosos,
cai-me alguma lágrima por não estarem junto de mim, compartilhando
daquele prazer …
Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a
roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando
comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus
amigos, e, principalmente os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber
que são meus amigos!
A gente não faz amigos, reconhece-os.
Vinícius de Moraes

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Meu orgulho de ser político

Em dias de total descrédito na política e nos políticos, armo-me de coragem e declaro incondicionalmente meu orgulho, meu prazer, minha vocação de exercer a política.
Longe de ser um meio de enriquecimento, de trampolim social, de conquista de poder, a política é, antes de tudo, coisa muito séria. O político digno deste nome, o estadista real, almeja muito mais do que estas benesses temporárias. A obra de um político convicto e sério surge do sonho de multiplicar o bem possível, de harmonizar direitos e deveres de cidadania.
A ciência da política tem história, tem cânones, tem exemplos. É esta política que vem desde Platão que eu tenho orgulho de praticar. A política que tenta criar leis que, no sentido mais amplo, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas e dos homens. Aliás, Platão, o filósofo ateniense, usava uma bela metáfora para exemplificar a nobreza da política: a atividade do político, disse ele, assemelha-se à da tecelagem. Nada mais é do que a arte da vestimenta, o que implica na escolha do tecido, das peças que devem ser costuradas à mão, e da armação final, pois seu objetivo maior é dar segurança e abrigo, da mesma forma que um traje protege das intempéries e assegura os pudores. Por isso, o político deve desenvolver habilidades tais como saber tecer, destramar fios e costurar, porque um dos seus afazeres maiores é conseguir misturar o tecido maior e melhor com o menor e o pior (isto é, encontrar o equilíbrio entre os fortes e poderosos e os mais fracos e indefesos).
É disto que tenho orgulho, tenho orgulho de participar de um processo que busca estabelecer mecanismos que permitam a construção coletiva do bem comum. Tenho orgulho e disposição para dialogar, para ouvir e entender os anseios das pessoas a quem sirvo, para buscar dispositivos que permitam melhor qualidade de vida para todos e um; não só para poucos.
Tenho orgulho também seguir um caminho capaz de colocar-me ao lado pessoas como John Fitzgerald Kennedy, seu irmão Robert Kennedy, Martin Luther King, Mahatma Ghandi, Golda Meir, Winston Churchill, Charles De Gaulle, Tancredo Neves, Mário Covas. Poderia discorrer nomes e mais nomes de políticos idôneos, dedicados às suas causas, é verdade, mas todos imbuídos da vocação maior de servir o povo.
Além de incontáveis pessoas inspiradoras, minha história acadêmica levou-me a perceber e definir, logo aos 19 anos, que minha escolha seria pela prática da política, pelo caminho onde a busca de uma sociedade mais justa faz todo o sentido. Em nome desta opção, abri mão de fazer fortuna nesta seara: sou um funcionário público, tenho consciência de meu papel de serviçal e interlocutor do povo; povo este que escolheu os políticos com quem trabalhei durante catorze anos e povo este que reconheceu a experiência e a dedicação deste meu caminho, elegendo-me legislador.
Minha história profissional aproximou-me da intelligentzia desta nação: pessoas sábias, capazes, honestas, devotas do desenvolvimento do país, mas, principalmente devotas do bem-estar do brasileiro. Servi alguns dos grandes luminares da política brasileira, como Fernando Henrique Cardoso e José Serra. Aprendi idoneidade e dedicação pela práxis política com líderes sensatos e entusiasmados.
Enfim, meus modelos só fazem reconfirmar a honra e o privilégio de minha opção. A possibilidade de conviver, aprender e, um dia talvez, equiparar-me a estes exemplos é o que me alimenta e me motiva. A verdade é que se pudesse, dedicar-me-ia 48 horas por dia a fazer política, obviamente junto ao calor e contando com o apoio de meus entes queridos.
Sim, sou um entusiasta da arte da política, mas não sou Polyana, uma pessoa sonhadora que vê coraçõezinhos em tudo e borboletas voando em volta das flores na janela. Sou capaz de perceber que o universo político anda polvilhado de oportunistas, de deslumbrados pelo poder, de espoliadores do povo e de incautos, que acabam por engessar-se a caminhos, colocando cabrestos e esquecendo-se de suas origens íntegras. Sou sabedor também de que a palavra política está atualmente deveras poluída, impregnada de um conceito negativo derivado de abundantes maus exemplos.
Mas, sim, sou um otimista. Acredito no Bem. Acredito na possibilidade de espelhar bons exemplos e contaminar cada vez mais políticos com um pacto pela ação, competência e integridade.
É assim então que tenho a ousadia e a coragem de explicitar: Tenho orgulho de ser político.